Uma das coisas que mais abomino no circo de horrores do showbiz é a capacidade que algumas pessoas têm, artistas ou não, de capitalizarem a desgraça (ou pior, a morte) alheia. “Fulano morreu? Hmmm, vou preparar um tweet bem bacana!…” Ou: “Vou ensaiar um depoimento bem lacrimoso pra dar à TV ou ao jornal”…
Quando Chorão morreu, fui procurado por jornais e TVs para dar o meu depoimento lacrimoso, afinal todos (ou quase todos) sabiam da nossa proximidade. Mas evitei. Não estou no time dos que capitalizam a desgraça alheia, como há aos montes por aí. Nem havia risco de eu ser confundido com tal espécie. Mas às vezes é preciso, de um modo quase militante, deixar bem claras as diferenças entre você e o mundo, por mais presunçosa que esta afirmação possa parecer. “Não basta que a mulher de César seja honesta, ela precisa parecer honesta”, diz sábio ditado popular.
Sim, éramos próximos. E sim, poderia dizer que fomos amigos, mesmo pertencendo a mundos tão distantes, e mesmo nos vendo tão poucas vezes na vida. Mas o sentido de “amizade” é algo que independe da frequência com que as pessoas se veem, penso eu. Tem mais a ver talvez com uma certa “afinidade”, palavra de sentido vago, mas que talvez explique a empatia que sempre senti com Alexandre, digo, Chorão. Ele gostava de dizer: “Você foi o primeiro cara da MPB a dar moral pra gente”. E eu retrucava: “Não sou MPB, pô, sou rock também. Só que de outra espécie”. Ele ria.
Desde que gravei “Proibida pra mim”, há 12 anos, e dei seguidos depoimentos elogiando a banda e suas sacadas poéticas, estivemos juntos em várias ocasiões. Primeiro pra uma matéria do “Vídeo Show”, mostrando o encontro inusitado entre uma banda de hard rock e um compositor da “MPB” (“deixe que digam, que pensem, que falem”…). Depois em várias canjas por festivais Brasil afora — “Planeta Atlântida” em Floripa, “Lupaluna” em Curitiba (na última vez em que canjeei com a banda, na edição de 2012 deste festival, subi totalmente borracho no palco e por pouco não dei vexame — esqueci letra e tudo o mais. Quando saí, Chorão falou: “Vocês acham que a turma do rock é louca, né? Mas essa galera da MPB é muito mais, olha aí…”).
Quando CBJ lançou o disco “Nadando com os tubarões”, em 2000, fui convocado a escrever o release de imprensa. Fiquei lisonjeado. Era fã da banda desde o primeiro CD. Tinha o que dizer. E disse. Que a banda era original nas composições, e que Chorão era dotado de uma verve muito especial, de poeta da rua, malandro, debochado, mas também romântico, sedutor, lírico — por que não? Nesse disco, o terceiro da trupe, me chamaram a atenção — além da mistura boa e esperta de hardcore, rap, ska, reggae e até pitadas de bossa, e do espírito sempre gaiato e irreverente do grupo, como pede o bom rock’n’roll — alguns achados nas letras, como: “Eu nunca paguei pra sonhar” (em “Pra mais tarde fazermos a cabeça”); ou “Todo mundo para para ver o caos… O batuque e o massacre, o batuque e o crack, o batuque e a bola, o pobre sempre é a bola” (em “Ouviu se falar”). Novos discos vieram, e com a maturidade da banda, vieram também canções que podem já ser consideradas clássicos dos anos 2000 — “Dias de luta, dias de glória”, “Papo reto”, “Céu azul” e “Só os loucos sabem”, entre tantas.
Ah, não podia esquecer um detalhe pra lá de importante. Chorão me convidou a tocar “Proibida” na cerimônia do seu casamento. Justificativa: sua noiva Graziela, musa da canção, preferia a minha versão, mais delicada, à versão “podreira” da banda. Dizia isso aos risos, tirando onda de enciumado. Nunca havia tocado em casamento algum, mas… Como negar um pedido dessa natureza vindo do homem? Por trás do personagem rock’n’roll, genuíno até a medula, havia também um cara doce e amoroso, camarada e gentil com os amigos.
“Magrelo, vou gravar um DVD dos 15 anos da banda e quero você lá. Vamos fazer um mix do seu arranjo com o nosso em ‘Proibida’, topa?”. “Claro, velho, tô dentro”. E lá fui eu pra Santos. Incrível dividir o palco com ele e a banda (em formação quase original, faltando apenas o Pelado na batera). Que vigor, que punch, que porrada! Não me lembro de ter ouvido antes uma banda brazuca com performance tão impressionante e volume tão ensurdecedor — deliciosamente ensurdecedor.
Noite memorável, quase dez mil pessoas vibrando alucinadas com o show (subi ao palco às 5h da manhã), cantando em coro com a banda, repetindo os bordões que o seu controverso e carismático frontman ordenava. Sim, digo “ordenava” porque a plateia comia na sua mão, outro talento indiscutível do cara… E sim, digo “carismático”, porque, por mais que não se saiba definir claramente o que é uma pessoa carismática, sabemos identificar quando vemos uma.
Depois retribuí o convite chamando-o para gravar “O desejo” no meu “O disco do ano”, lançado ano passado. A música é um rap de refrão melódico, cujo personagem é um sujeito angustiado, dividido entre o desejo insaciável de consumir e a consciência da morte dos sonhos (em suma, esse cara somos nós). Chorão arrasou, com seu jeito muito particular de “rimar”. Mandou um improviso tão bom que não tive como não incluí-lo na faixa já quilométrica.
Na ocasião, junto com o seu filho Alexandre, no estúdio Mega, em Higienópolis, ele me contou que estava entrando numa nova fase, ouvindo mais música brasileira — Jorge Benjor, Gil, Tim Maia… Também me mostrou, ao violão, três pedaços de canções à espera de um desfecho, que gravei no meu iPhone. Finalizei uma delas e a batizei por conta própria de “Um dia você vai”, um rock-balada sentimental e doído. Gravei uma versão de violão e voz em janeiro deste ano e desejava enviá-la pro novo parceiro pra ele dar o seu parecer, como faço sempre que componho a quatro mãos. Infelizmente não fui ágil o suficiente. Pudera! Jamais podia imaginar que aconteceria o que aconteceu. Na parte da letra escrita por ele, ele diz: “Reaprendendo a viver com as coisas /Sem olhar pra trás pela primeira vez”. É vero. Chorão estava tentando reaprender a viver. Pena que não houve tempo. Sim, o destino roteirista é às vezes implacável.
Por Zeca Baleiro, artigo publicado em O Globo