O avião do meu pai explodiu
A história de Hannah, 6 anos, a garota que sentiu o acidente do pai e ainda o espera em casa para contar histórias
Texto de Marcelo Abreu
Correio Brasiliense
Passava das 16h30 da última sexta-feira quando, de repente, a menininha disse à amiga e vizinha da 310 Norte com quem brincava: O avião do meu pai explodiu. A babá da amiguinha, que ouviu a conversa e acompanhava a brincadeira das duas na sala, arregalou os olhos. E retrucou: O que você disse? A menina não mais falou sobre o assunto. É como se aquilo nunca tivesse sido dito. E voltou a brincar com a amiguinha. A babá ficou impressionada com o comentário. E passou o resto da tarde pensando naquela frase.
Naquele momento, enquanto a menina brincava com a amiga, os passageiros da Gol do vôo 1907 despencavam para a morte na selva amazônica. Dentro dele, estava o pai de Hannah, de 6 anos, o antropólogo e doutor em etnologia Andreas Kowalski, 43, que voltava de Manaus, para onde tinha ido participar da primeira reunião de consultoria indígena de uma instituição alemã.
Andreas sonhava em viver no meio dos índios. Durante dois anos, fizera isso em Barra do Corda, no Maranhão, com os índios da tribo Canelas. E falava sobre o desejo diariamente à mulher, a jornalista Maria Dalva Veloso Kowalski, maranhense de 46 anos, que o conheceu em São Luís, em 1998, numa festa de aniversário de uma amiga. Ele era muito tímido. Nos apaixonamos assim que nos vimos, diz ela, olhando as muitas fotos do marido e passando os dedos delicadamente sobre o rosto dele, como se quisesse tocá-lo na alma.
A tarde de sexta-feira acabou. Depois da brincadeira, Hannah voltou para casa. Era hora de tomar banho e se preparar para receber o pai, havia uma semana fora. Sabia que ele chegaria à noite e lhe contaria as histórias em alemão que só ele sabia contar. E as músicas que ela gostava de ouvir. Hannah nasceu em Hamburgo e veio para o Brasil com família em 2002. O pai nunca deixou que ela esquecesse a língua da terra onde nascera. E era interessante vê-los conversando. Serelepe, ela consertava as derrapagens do pai no português. E ele gostava de ver a filha lhe dando aulas. Ria como menino das broncas que Hannah lhe dava. Pai, não é assim. É assim
Obediente, ele prometia nunca mais errar.
Era perto das 20h da mesma sexta-feira. Correndo, Dalva saiu do trabalho, na TV Senado, e seguiu para o aeroporto. Sabia que estava atrasada. Afinal, Andreas ligara no final da tarde de quinta-feira para dizer que o vôo chegaria às 18h12. E que tinha uma grande novidade para contar. Ele viajaria para o Mato Grosso e iria conhecer uma reserva indígena no Xingu. Os detalhes ele disse que só contaria pessoalmente.
No meio do caminho, enquanto dirigia, Dalva estranhou o fato de o marido não ter ligado ainda. Andreas era muito pontual e não gostava de atrasos nem o dele nem dos outros. Dalva pegou o celular e começou a ligar. Queria dizer que estava a caminho e que ele o esperasse no mesmo lugar onde costumava pegá-lo. Insistentemente, ela ligou. E só atendia a caixa-postal. Dalva estranhou mais uma vez, mas pensou que a bateria tivesse acabado.
Piores momentos
Deu duas voltas pelo local combinado. Nada. E resolveu, então, estacionar o carro. Entrou na área de desembarque. Procurou o marido pelos cantos previsíveis. Nada. Foi ao ponto de táxi. E insistia no celular. Só a caixa-postal. Eram quase 21h. Por acaso, Dalva resolveu olhar o painel com a chegada dos vôos. E leu, a princípio: Vôo atrasado. Ela se dirigiu, então, aos funcionários da Gol para saber mais detalhes sobre a chegada do avião.
Lá, mandaram-na esperar que um dos supervisores iria lhe dar mais informações. E, de repente, a jornalista começou a perceber que outros parentes de passageiros, também aflitos, aglomeravam-se nos balcões da companhia. E no painel de chegada dos vôos, a mensagem: Vôo 1907 Procurar companhia. E pediram que os parentes dos passageiros se dirigessem até uma sala da Gol. Nesse momento, sem querer, Dalva ouviu uma funcionária comentar com outra: Parece que teve um acidente
. Dalva viveria, a partir daquela hora, os piores momentos de sua vida.
E as informações, embora ainda desencontradas e confusas, finalmente foram repassadas aos familiares na madrugada. A lista dos passageiros só foi divulgada por volta das 2h da madrugada. Seguiram-se desespero, choro, revolta e muita tristeza. Dalva não sabia mais o que pensar ou dizer.
Como contar para a filha que o avião em que seu pai viajara estava sumido? Como dizer a ela que Andreas não havia chegado? Como avisar aos pais de Andreas, na Alemanha, sobre a tragédia até então pouco esclarecida? Em casa, Hannah, a essa altura, cansada de esperar, adormeceu entre suas bonecas. No dia seguinte, com certeza, ele lhe contaria todas as historinhas que ela pedisse.
No dia seguinte, o pai não estava em casa. Com os olhos inchados de tanto chorar, Dalva tentou disfarçar o sofrimento diante da filha. Disse-lhe que o pai estava chegando. Uma amiga de Dalva levou Hannah para a casa dela. Lá, a menina brincaria com a amiguinha e não faria mais as perguntas que a mãe não sabia ainda como responder.
Virou anjo
No fim da manhã de ontem, na casa dela, na 310 Norte, Dalva recebeu o Correio para contar sua dor. Ela falou com exclusividade sobre a angústia de perder o marido e de não saber ao menos se vai conseguir enterrá-lo. De vez em quando Hannah entrava no quarto e pedia para que mãe não chorasse mais. A menininha enxugou as lágrimas de Dalva e disse, comovidamente, usando o verbo sempre no presente: Meu pai é apaixonado pela minha mãe. E eu por ele. E depois, corta o coração de quem a escuta falar: Ele tá ajudando as pessoas feridas no avião e vai voltar para contar as historinhas em alemão pra mim. Ele faz isso todas as noites, antes de eu dormir.
A mãe não consegue disfarçar a dor e chora, sufocadamente, para não entristecer a filha. É o pior choro, aquele que não grita. Hannah sai do quarto. Dalva relata, com os olhos empapuçados : Contei pra ela que o papai tinha virado uma estrela. Ela me respondeu: Mãe, meu pai é um anjo. E admite: Hannah bloqueou a morte do pai. Ela não fala sobre o assunto e pede pra eu parar de chorar porque ele vai voltar. Em prantos, tenta explicar a visão da filha no dia do acidente: Quando ela disse que o avião do pai tinha explodido foi exatamente a hora que ele tava caindo. O Andreas era tão apaixonado pela Hannah que deve ter pensado nela nessa hora e ela deve ter sentido ou visto alguma coisa.
E continua: Meu marido foi para a guerra do Kosovo (em 2000), como parte do grupo internacional de ajuda comunitária. E morreu de acidente de avião na selva amazônica!. Ainda chorando, faz um desabafo desesperador: Se Deus existe, por que fez isso com a gente? Ele era um homem bom, não tinha maldade, era incapaz de fazer mal a alguém. Vivia para ajudar as pessoas
Na tarde de ontem, ainda durante a entrevista, Dalva fez mais uma revelação: No início, como não se sabia ao certo o que tinha havido, eu pensei que meu marido fosse voltar. Achava que o avião tinha pousado em algum lugar e ele, como conhecia tanto de floresta e era especialista em ajuda humanitária, estaria ajudando a salvar outras pessoas. Só de ontem (domingo) pra cá, encarei a realidade. E chora mais uma vez: Eu ouvia história de que um passageiro do avião tinha falado com um parente pelo celular, que a mulher do piloto tinha entrado em contato com ele. Eu sabia que era tudo mentira, sou jornalista e sei que um avião não desaparece simplesmente. Mas eu precisava acreditar naquilo.
Agora, Dalva só espera que o corpo do marido seja encontrado. Seja como for. Vou levá-lo para ser enterrado na Alemanha. Minha sogra gostará de ter o corpo do filho perto. É um direito de mãe. Hannah ainda espera a volta do pai. Quer que ele cante suas músicas preferidas. E pede, a todo instante, para que a mãe não chore. No vôo 1907, 155 pessoas perderam a vida. Entre elas, o pai de Hannah, que amava a selva, amava os índios e morreu ali, no meio deles, no lugar que fazia planos de viver eternamente.
Ele tá ajudando as pessoas feridas no avião e vai voltar para contar as historinhas em alemão pra mim
Hannah Kowalski