Muitos anos de atividade médica intensa levaram-me a acreditar que podemos entender de gente mesmo sem formação psicanalítica. Basta que aprendamos a ouvir e, assim, descobrir o que pensam as pessoas doentes. Com isso, abrem-se as fechaduras das frases entrecortadas, dos suspiros e das metáforas que são sempre mais do que isso.
Com este exercício diário de humanidade, descobrimos que a nossa lide é um jogo de sedução e conquista de confiança, e nada atrai mais o paciente do que a identidade de afetos e sentimentos. Por outro lado, não há instrumento de aversão mais eficiente do que a desconsideração. Uma cara risonha no velório do meu avô fez com que, durante anos, eu lembrasse daquele primo, o da contramão da minha dor, cada vez que tinha uma náusea ou uma dor de barriga qualquer.
Depois de um tempo, acabamos perdoando esses descompassos estúpidos, mas as farpas ficam lá, e qualquer distraído roçar de insensibilidade vai pô-las, outra vez, a latejar. O Artêmio era um homem enfarruscado, que economizava gestos e palavras, mas havia uma franqueza naquele olhar vertical que evocava autenticidade.
Classificado assim, foi fácil me tornar amigo e interlocutor da sua solidão e desencanto quando os exames confirmaram a disseminação de um tumor que operáramos três anos antes. Alguém precisava ouvi-lo, e a família estava ocupada com outras coisas. Essas coisas que só descobrimos insignificantes depois que perdemos as outras. Nossas conversas tinham sempre dois estágios: o da inquirição técnica, em que ele respondia perguntas que lhe fazia ao pé da cama, e o da conversa pessoal, naquela interação que exige que sentemos, porque não há interface afetiva com os olhares desnivelados.
Ouvi dele as histórias de uma vida dura, em que a infância fora negligenciada em nome do trabalho precoce para substituir o pai desaparecido e quase justifiquei a sua inflexibilidade como retribuição pelo que a vida lhe presenteara. Próximo do fim, encontrei-o deitado, com aquele vão entre as pernas que resulta do sumiço da musculatura das coxas. As queixas de dor contínua e a sua declarada rebeldia pelo sofrimento sem destino me comoveram. Pensei nele como o cadáver adiado de Fernando Pessoa, e saí. A morfina nos ajudaria a enfrentar o fantasma da morte.
Quando voltei mais tarde, ele fez uma confissão: “O senhor me confortou quando pareceu consternado me ouvindo falar da minha dor, e depois me destruiu quando ao sair, com a sua voz inconfundível, saudou alegremente um colega no corredor. A tristeza dos amigos verdadeiros costuma ser mais duradoura”.
Tendo acreditado, depois de décadas de aprendizado, que alcançara a condição de um médico pronto, de repente me descobri um mero estudante em construção. Havia ainda muita vida por viver.
J. J. Camargo
Professor de cirurgia torácica na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Doutor em pneumologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde se formou em 1970, fez especialização na Clínica Mayo (EUA).