De “coração quebrado”: considerações sobre o luto
Em um estudo lançado há pouco tempo, a morte de alguém esteve associada a um risco 21 vezes maior de ter um Infarto do Miocárdio nas primeiras 24 horas de umluto. O estudo avaliou 1985 pessoas que sofreram IAM – atesta, de certo modo, aquilo que há muito é conhecido pela sabedoria popular: que a perda de um ser amadodeixa-nos literalmente de “coração quebrado”. Freud (1917) considerou o luto, de modo geral, uma “reação à perda de uma pessoa amada” (p. 172). O lutocomporta um abatimento penoso, perda de interesse pelas coisas em geral e afastamento de toda a atividade que não se ligue a memória do morto. É comose, junto com o ser amado e perdido, tivessem sido enterradas “todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos. Nós nos comportamos como os Asra, que ‘morrem, quando morrem aqueles que amam’” (Freud, 1916, p. 232).Em geral, continua Freud (1915), nossa atitude cultural-convencional diante da morte não é franca: sustentamos, por um lado, que a morte é o desfecho necessário de toda existência e, por outro, manifestamos a inconfundível tendência de eliminar a morte da vida, tentamos tratar seus assuntos como se fossem de natureza fortuita em vez de inevitável, procuramos reduzi-la ao silêncio, daí o total colapso que sofremos quando morre alguém que nos é precioso. Até o início do século XX, de tão frequente, a morte constituía-se familiar, conforme o historiador Philippe Ariès (1977). Desde então assistimos a uma revolução brutal nas atitudes e representações coletivas tradicionais frente à morte nas culturas cristãs Ocidentais.Os homens passaram a se calar sobre a própria morte que se tornou vergonhosa e objeto de tabu e junto com ela as manifestações públicas de luto. Em contrapartida, assistimos nas últimas décadas a proliferação de um coro de especialistas (antropólogos, historiadores, psicólogos, tanatólogos, …)dispostos a reinvestir a morte diante da necessidade de se discutir as questões sobre ética e cuidados no fim da vida. Ariès (1977) chamou de “morte selvagem”o modo de morrer atual que cobriu de pudor e vergonha a morte e tudo o que lhe diz respeito, incluindo aí o luto. Não há mais tempo para o luto. Os seculares ritos fúnebres foram abolidos ou abreviados. A manifestação de pesar deve ocorrer de maneira contida, discreta, silenciosa. O enlutado fica isolado em sua dor, sem contar mais com o apoio benevolente dos próximos em uma sociedade que privilegia a produtividade, o sucesso e o bem-estar. Injunções, tais como, a “fila anda”, “time is money”, “ocupe-se” tornaram-se as ordens do dia. Imperativos externos ao sujeito que está de luto cujo efeito pode ser o de provocar o seu silenciamento e o agravamento de seu pesar. A função do luto consistiria em realizar a subjetivação da perda, uma operação nomeada por Freud (1917) de “trabalho de luto”. É dizer de outro modo que a morte de um ser próximo bem como a sua inumação não são suficientes para encerrar a questão para os que ficam. É necessário elaborar essa morte no campo simbólico, o luto seria a tentativa de realizar a inscrição subjetiva da perda. Sentir-se de “coração quebrado”, no ponto mais radical de um colapso psíquico e físico, exprime esse momento de uma exclusiva e dolorosa devoção ao luto, momento em que o mundo parece pobre e vazio. O trabalho de luto, árduo e doloroso, é realizado traço a traço, a partir da invocação de lembranças e expectativas ligadas ao ser perdido. Um trabalho que não vai sem a convocação do simbólico, isto é, em uma linguagem que possa expressar aquela dor. Se somente o enlutado pode imputar ao que foi perdido o seu devido valor, isso é algo que ainda precisa ser construído, uma vez que, a princípio, não se sabe bem o que se perdeu. Há aí o perigo, para alguns, de se perder na perda, seguindo o destino funesto do morto, seja pela via do suicídio ou de uma condição médica que ameace a vida. O luto é, como disse Freud (1916), “um grande enigma” e efetuar a separação definitiva de um ser amado demanda tempo, tempo de luto que no passado os ritos sagrados demarcavam . No tempo da “morte selvagem”, sem público e sem o amparo de ritos, efetuar o luto torna-se mais problemático e, em alguns casos, pode demandar a intervenção de psicoterapeutas ou psicanalistas.
Míriam Ximenes Pinho
Psicanalista.