Itália do século 15. Na literatura, um general que serve o reino de Veneza, chamado Otelo, casa-se com Desdêmona, bela filha de um importante senador. Um de seus subordinados, Iago, inveja o poder do comandante. Para destruir sua felicidade, começa a insinuar uma possível traição da esposa com o jovem tenente Cássio. Ao imaginar Desdêmona com o amante, Otelo enlouquece de ciúme. Sem controle, mata a inocente mulher. Brasil do século 21. Na televisão, o músico Laerte se apaixona pela prima Helena. O amor une o casal desde a infância, mas o ciúme o separa antes do casamento. Transtornado pela ideia de uma possível traição de Helena com Virgilio, Laerte tenta assassinar o rapaz.
Seja pelo lendário Otelo de Shakespeare ou pela novela Em Família, exibida às 21h na Globo, o ciúme já rendeu assunto para a ficção. E muita tragédia na vida real. Ainda que seja considerado por muitos como o tempero do amor, especialistas alertam: quando em excesso, pode ser considerado uma doença. Em muitos casos associado a outros transtornos neurológicos, o ciúme patológico é normalmente baseado em delírios de traição e desejo obsessivo de controle sobre o parceiro.
Conforme o psiquiatra Paulo Belmonte de Abreu, chefe do departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFRGS, o ciúme pode ser entendido como o medo de perder uma pessoa amada para um terceiro. Ainda que complexo, o sentimento afeta pessoas de todas as idades. Estudos indicam que até bebês sentem ciúme em determinadas situações, como no período de nascimento de um irmão. O receio de perder a atenção da mãe pode gerar essa tensão, mesmo que a criança não consiga elaborar bem o sentimento que a aflige.
Apesar de ser desagradável, o ciúme cumpre um papel importante no amadurecimento emocional, pois faz parte do processo de formação e manutenção dos vínculos afetivos, explica o especialista:
— Ele provoca uma tensão, um mal-estar frente à ideia de perder uma pessoa importante para outro. É uma etapa que todos passam quando estabelecem uma relação mais íntima com alguém, seja naquelas de trabalho, familiares ou amorosas.
Carga genética pode determinar a intensidade do sentimento
A intensidade do ciúme e se vai gerar consequências no afeto ou ser apenas uma tensão passageira depende de cada indivíduo.
— Temos uma carga genética que determina se somos mais ou menos ciumentos e aprendemos a lidar com isso ainda quando crianças, quando percebemos que não existe somente aquela dupla eu-mamãe, mas também existem outras duplas: mamãe-papai, mamãe-irmãozinho. Isso gera um forte sentimento de exclusão com o qual temos de lidar, também em outras relações, durante toda a vida — comenta o psiquiatra e psicanalista Marco Antonio Pacheco, chefe da Unidade de Psiquiatria do Hospital São Lucas da PUCRS.
Embora existam pessoas com mais ou menos tendência para serem ciumentas, a verdade é que ninguém está imune. E se há algum aspecto da vida em que esse sentimento é mais recorrente, com certeza é na esfera amorosa.
O rival imaginário
Na relação a dois, o espaço reservado para o ciúme pode abrigar desde o nível saudável até o descontrole doentio. Para a psicóloga Marina Vasconcellos, especialista em terapia familiar e de casal, o sentimento é considerado normal quando transitório e baseado em fatos reais. Laerte nunca teve provas da traição de Helena com Virgilio, que se torna o rival imaginário que prevalece no ciúme patológico, assim como o desejo obsessivo de controle total sobre os sentimentos e comportamentos do outro — Laerte chega a proibir Virgilio de chamar a amada de “Leninha”.
Esse tipo de ciúme caracteriza-se por ser exagerado, sem motivo aparente que o provoque, deixando o ciumento absolutamente inseguro.
— Dúvidas se transformam em ideias supervalorizadas, levando a pessoa a checar celulares e ligações recebidas constantemente, a querer saber quem enviou mensagens, que e-mails recebeu e por qual motivo, com quem falou e sobre o que, onde está e a que horas voltará. Por mais que tente aliviar seus sentimentos, nunca estará satisfeito, permanecendo o mal-estar da dúvida. Enfim, a vida a dois transforma-se num verdadeiro martírio — descreve a especialista.
Casos como esse são conhecidos como Síndrome de Otelo — remetendo à obra de Shakespeare — e podem estar associados à esquizofrenia, demências ou doença de Parkinson. Se não tratados corretamente, podem resultar em desfechos trágicos.
Antes da catástrofe
Para descobrir a fronteira entre o ciúme dito normal e o patológico, é preciso prestar atenção no comportamento do parceiro, e colocar limites desde o início da relação. Conforme a psicóloga Marina Vasconcellos, muitas vítimas de ciumentos ou ciumentas acabam cedendo às pressões para evitar brigas momentâneas, o que pode, a longo prazo, alimentar ainda mais este comportamento doentio:
— O resultado é catastrófico, pois quando menos imaginar perceberá o quanto está agindo em função do outro e se deixando de lado, submetendo-se, anulando-se por completo.
A recomendação é sempre conversar com o companheiro ou a companheira, mostrar o quanto as cobranças podem afetar a relação e destacar a importância de cada um ter seu espaço, seus amigos e sua liberdade. Caso o ciúme permaneça e continue perturbando o relacionamento, pode estar na hora de buscar ajuda profissional.
Já para os ciumentos, especialistas recomendam sempre parar para refletir quando o sentimento aparecer. Tentar entender a origem do ciúme pode ajudar a controlá-lo. Neste momento, o ciumento deve se perguntar se a tensão foi desencadeada por insegurança, por um fato real, ou até por alguma experiência de traição anterior.
— Quando o individuo ciumento reconhece que o problema tem origem interna, a ajuda profissional pode ser extremante útil. Quando o sujeito acredita que a origem é só externa, isto é, que ele tem razão para ter ciúme, geralmente não aceita ajuda profissional e a relação tende a degastar e até terminar — resume o psiquiatra e psicanalista Marco Antonio Pacheco.
O ciúme é demais quando…
— Começa a trazer problemas para a rotina de quem o sente (como dificuldades de concentração no trabalho, no estudo e nas relações sociais)
— A pessoa se sente mobilizada e limitada apenas para e pelo ciúme (quando deixa, por exemplo, de ir a lugares ou fazer coisas apenas em função desse sentimento)
— Passa a ter ideias que não correspondem à realidade (como fantasias de traição com o parceiro)
— Torna a pessoa capaz de agredir o parceiro (verbal e fisicamente)
— Deixa o relacionamento insuportável pela tentativa de controle do parceiro em tudo o que ele faz: a pessoa checa as mensagens do celular, quer saber quem enviou e-mails, não permite que o outro frequente qualquer evento social sem sua presença, afasta o parceiro de seus amigos por desconfiar de toda e qualquer relação de amizade que ele possa ter
Como lidar
Quando o ciumento é o parceiro…
— Deixe claro que está percebendo o ciúme
— Informe, de maneira clara, porém gentil, que isso está prejudicando a relação de vocês
— Lembre-o de situações ou afirmações nas quais ele demonstrou ciúmes e mostre porque ele estava equivocado ao sentir isso
— Peça que ele fale com outras pessoas sobre suas atitudes
— Se achar necessário, sugira que ele procure ajuda psicológica
— Diga o que está sentindo em conversas periódicas sobre a relação
— Preste atenção no que seus familiares e amigos dizem sobre suas atitudes em relação a seu parceiro
— Converse com seu parceiro e veja como ele está se sentindo diante de suas crises de ciúme
— Tente controlar seus impulsos e pense em por que está sentindo isso
— Pense sobre suas relações anteriores e procure identificar se era ciumento antes da relação atual
— Considere a possibilidade de buscar ajuda profissional para aprender a lidar com seus sentimentos
Além da ficção*
“Tenho 72 anos e sou casada há 50. Quando jovem, fui morar no interior do Rio Grande do Sul, onde conheci meu marido. Namoramos por dois anos. Ele era atencioso, me dava presentes e era apaixonado. Logo depois que casamos, comecei a notar comportamentos estranhos. Ele era muito ciumento, não me deixava ter amigos, nem mesmo conversar com o marido de colegas de trabalho. Tentei cursar faculdade, mas ele entrava na sala e gritava comigo, me carregava de volta para casa.
Tive de largar o trabalho também, pois não podia ter contato com ninguém. Chegou a acreditar que eu tinha um caso com a nossa empregada. Ele ficava violento, já chegou a quebrar minhas costelas, me arrastar pelo cabelo. Como eu tinha vergonha de contar para a minha família, escondia de todo mundo. Fiquei muito sozinha e deprimida, não saia mais de casa. Lá pelos 40 anos, comecei a procurar ajuda para entender o que acontecia. Tivemos três filhos que, até hoje, têm sequelas psicológicas pelo comportamento do pai.
Meu marido já foi retirado de casa pela Brigada Militar, internado algumas vezes e ainda toma muitos medicamentos para controlar a doença. Hoje eu entendo que fui vítima de um ciumento patológico.”
“Eu me achava normal até os 17 anos, quando comecei a namorar um rapaz de 20. Ele estudava à noite e eu comecei a imaginar as gurias dando em cima dele e ele correspondendo. Sofria calada, mas, aos poucos, fui extravasando meu ciúme, perguntava sobre as colegas, o que conversavam, telefonava sem parar e, se ele não atendia, eu ligava para os amigos dele. Brigávamos muito, ele cansou e rompeu o namoro. Só voltei a namorar aos 20 anos e tudo se repetiu. Entrava no computador dele e não achava nada de concreto, mas tudo me irritava, até um alô simpático de uma amiga. Ele também rompeu comigo. Procurei ajuda profissional. Quando era criança, minha mãe seguia meu pai de carro e levava eu e minha irmã. Ela jurava que ele tinha uma amante, assisti muitos escândalos e, somente com a terapia, comecei a questionar se ela também não tinha ciúme patológico. Hoje tenho 26 anos e ainda sofro. Estou num relacionamento sério há dois anos, converso muito com meu terapeuta sobre meu ciúme. Aprendi a primeiro desconfiar da minha desconfiança.”
*Os nomes foram omitidos para preservar a privacidade das entrevistadas