O acúmulo anormal de gordura no fígado, na maioria das vezes, não produzirá nenhuma lesão hepática. Porém, em cerca de 2% a 5% da população, o fígado sofre lesões pela gordura, produzindo níveis elevados nos exames de sangue que testam a função hepática.
Essa condição é chamada “Esteatohepatite não-alcoólica”, EHNA ou NASH, na literatura inglesa. O termo não-alcoólica significa que as alterações hepáticas não são produzidas por uso excessivo de bebidas alcoólicas e que a hepatite não tem causa viral. É uma doença inflamatória crónica com acúmulo de gordura no fígado, células inflamatórias que caracterizam a hepatite, fibrose e destruição das células hepáticas, podendo surgir regeneração nodular. É potencialmente fatal, uma vez que pode evoluir para cirrose e mesmo para cancro do fígado.
Atualmente, é uma importante causa de morte, que aumenta a cada ano. Sabe-se ainda que o problema está diretamente relacionado com a obesidade, que há muito se tornou numa epidemia de dimensão mundial. Para os gastroenterologistas, trata-se da segunda causa em número de consultas em doenças hepáticas. Avalia-se ainda que, dentro de 15 anos, vai superar a principal causa de inflamação no fígado que é a hepatite C. O “fígado gordo” será a doença do século XXI.
Causas variadas
Qual é a causa do fígado gordo? Na maioria das vezes, o problema é diagnosticado em pessoas obesas e diabéticas, e em algumas mulheres com uma doença conhecida como “Síndrome do ovário policístico”. Drogas como a predinisona, amiodarona, tamoxifeno usadas para o tratamento do cancro da mama e anti-retrovirais também constam entre factores predisponentes.
Estudos recentes têm demonstrado que a insulina, hormona que ajuda a controlar o açúcar no sangue, não funciona bem nas pessoas obesas, constituindo a chamada resistência à insulina (pré-diabetes), hiperlipidemia (excessiva concentração de gordura no sangue). Outra causa é a perda de peso acentuada nos casos de cirurgia de bypass jejunoileal e bypass gástrico.
O organismo desencadeia uma inflamação contra os hepatócitos com acúmulo de gordura, que são gradualmente destruídos. Dependendo da intensidade dessa destruição, isso pode levar à formação de fibrose (cicatrizes) que se vai acumulando e progredindo até à formação de nódulos, o que caracteriza a cirrose. |
É possível que os factores genéticos também sejam responsáveis por esse acúmulo de gordura. Pode ocorrer se duas pessoas comerem a mesma quantidade de gordura e, se uma delas tiver a pouca sorte de ter uma alteração num determinado gene, poderá ficar doente e a outra não.
A presença de obesidade e diabetes mellitus são os factores de risco mais prevalecentes. Conclui-se que muitos casos de cirrose dita “criptogénica”, aquelas formas de cirrose em que não se conhece a causa, podem ser, na realidade, secundários à EHNA.
Sintomas
Na maioria das vezes, a doença é assintomática ou apresenta-se com sintomas irrelevantes. As queixas dos pacientes são pouco específicas, como fraqueza, fadiga, mal-estar e dor no abdómen superior direito nas fases avançadas da doença ou na vigência de cirrose. No exame clínico, 70% a 90% dos pacientes apresentam aumento do tamanho do fígado. As pessoas acometidas são geralmente adultas acima dos 40 anos de idade e mulheres, preferencialmente com obesidade mórbida. Entretanto, a doença pode também acometer crianças e adultos com peso normal e indivíduos não diabéticos.
A primeira suspeita de EHNA ocorre quando uma pessoa realiza exames de sangue de rotina e os níveis das provas de função hepática estão elevados, tais como a alanina aminotransferase (ALT) ou a aspartato aminotransferase (AST). Em continuidade aos exames de função hepática, a pessoa não apresenta nenhuma razão para doença hepática, como: marcadores serológicos dos vírus da hepatite, uso de medicamentos ou uso excessivo de bebidas alcoólicas. Nesses casos, o exame por imagem revela gordura no fígado.
Critérios de maior relevância para o diagnóstico de EHNA
1. Esteatose associada a infiltrado inflamatório hepático; fibrose ou cirrose evidenciada através de biópsia hepática. |
Como se faz o diagnóstico
O único meio utilizado para definir o diagnóstico de EHNA e separá-lo de uma simples esteatose hepática é através da biópsia. Até ao momento, não existe nenhum exame de sangue ou de imagem confiável, capaz de proporcionar essas informações.
Nalgumas situações, com doença hepática severa, aumenta a importância da biópsia hepática na avaliação de pacientes com elevação persistente das aminotransferases, em que não se tenha determinado a causa.
Auxiliam também no diagnóstico os exames por imagem do fígado como a ultra-sonografia que é capaz de identificar o fígado gordo. Os achados ultra-sonográficos, quando característicos, dispensam a realização de tomografia e de ressonância magnética, mas a biópsia hepática é indispensável para confirmação diagnóstica.
O exame histopatológico da biópsia hepática constitui o padrão-ouro para o diagnóstico de esteatohepatite não-alcoólica. Os achados histopatológicos podem variar de esteatose e esteatohepatite a graus variáveis de fibrose e cirrose. A fibrose é o achado mais grave, pois sugere lesão irreversível. Existem graus variáveis de esteatose fibrose. Esse estadiamento varia de 1 a 4, sendo 1 fibrose leve e 4 o estágio final caracterizado por cirrose hepática.
No prognóstico, cabe ao clínico suspeitar dessa entidade em pacientes com elevação persistente das provas de função hepática e com factores de risco, principalmente a obesidade, intervindo precocemente nas causas tratáveis.
O que se procura saber é o tempo de evolução desde o estágio de esteatose à cirrose. No momento, dispomos de poucas informações em referência ao seguimento a longo prazo de indivíduos com EHNA. A fibrose associada à EHNA pode progredir para cirrose em até 10% desses casos. Alguns grupos de estudiosos acreditam que a progressão para cirrose ocorra num tempo médio de 18 anos e que seriam necessários outros factores lesivos adquiridos após a adolescência.
Tratamento
Até ao momento, não existe nenhum tratamento cientificamente comprovado para a EHNA. O resultado de alguns estudos-piloto sugerem que determinadas drogas utilizadas no tratamento da diabetes melhoram os níveis das enzimas hepáticas e lentamente revertem a progressão da doença.
Outros estudos-piloto indicam que pacientes com essa doença hepática apresentam melhoras através de dieta equilibrada e exercícios físicos, e respondem favoravelmente ao tratamento com anti-oxidantes como a vitamina E.
Alguns autores acreditam que, mesmo na ausência de diabetes, as drogas que reduzem a resistência insulínica podem melhorar a EHNA. O paciente portador de esteatohepatite não-alcoólica pode evoluir com insuficiência hepática terminal, necessitando de transplante hepático. Há ainda a possibilidade de recorrência da esteatose mesmo nos fígados transplantados.
Nos pacientes obesos submetidos à dieta hipocalórica, foram constatadas melhoras no exame da biópsia. A esteatose estava presente em 83% das amostras antes do início do tratamento dietético e em 38% após a redução do peso corporal. Por outro lado, as alterações inflamatórias foram encontradas em 14% dos casos antes do tratamento e em 26% após a perda de peso.
Aminotransferases
As aminotransferases (AST, ALT) são enzimas encontradas no fígado, no músculo cardíaco, músculos esqueléticos e, em menor concentração, nos rins e pâncreas. Em adultos saudáveis, elas encontram-se mais elevadas nos homens do que nas mulheres e variam de acordo com a idade. Mas quando a taxa dessas enzimas aumenta descontroladamente, então acende-se a luz vermelha para diagnósticos como o da hepatite ou da esteatose alcoólica ou não alcoólica. O exame de sangue revela esse aumento e indica a necessidade de prosseguir com exames mais específicos, de acordo com a orientação médica. |
Provavelmente, o método de emagrecimento influencia a evolução, pois a rápida mobilização da gordura das suas reservas intra e extra-hepáticas teriam efeito potencialmente tóxico para o fígado.
Dietas muito rígidas, com intensa privação de alimentos, podem resultar em aumento do fluxo de gorduras corpóreas para o fígado, causando esteatose e possivelmente EHNA.
Prevenção
A prevenção da EHNA está baseada nos factores de risco já conhecidos, que são as doenças mais associadas ao estilo de vida moderno, à obesidade e à diabetes mellitus. Há, a nível mundial, cada vez mais crianças obesas, pois os maus hábitos alimentares começam, muitas vezes, na infância. O sedentarismo é crescente entre as crianças que têm trocado as actividades ao ar livre pelo computador, a televisão e os jogos de vídeo. Em consequência, passam também a vivenciar, desde pequenas, o stresse e a correria da vida moderna.
Desde a infância deve-se manter hábitos saudáveis. Se o seu filho está obeso ou tem risco de apresentar excesso de peso, o que é que poderá fazer por ele? O primeiro passo é conversar com o seu pediatra. Esse especialista estabelecerá um programa para que o seu filho alcance o peso ideal sem risco de doenças metabólicas. Como parte de um programa para o peso saudável, os pais podem ajudar os seus filhos a alcançarem o peso ideal.
O excesso de peso pode ser decorrente de diversos factores, inclusivamente genéticos; porém, os factores ambientais são, frequentemente, os componentes principais. Comer de forma saudável e praticar actividades físicas não se tornam hábitos da noite para o dia. Leva tempo e exige esforço para se tornarem parte da rotina diária.
Em termos de saúde pública, a obesidade já é considerada epidemia mundial. A prevalência da doença vem a aumentar significativamente nos últimos anos, em todas as cidades. Nos Estados Unidos, 60% dos homens e 51% das mulheres têm excesso de peso ou obesidade.
Os hábitos alimentares da população – a baixa frequência de alimentos ricos em fibras, aumento da proporção de gorduras saturadas e açúcares da alimentação – associados a um estilo de vida sedentário compõem um dos principais cenários para o desenvolvimento da obesidade e diabetes tipo II, favorecendo o surgimento de esteatohepatite não-alcoólica.
Também é de fundamental importância evitar bebidas alcoólicas e o uso de medicamentos desnecessários.
Pesquisas demonstram que as crianças são mais propensas a comer alimentos saudáveis e a tornarem-se activas, quando os outros membros da família também agem assim. Isso demonstra a necessidade de todos os membros da família adotarem regime alimentar e atividades físicas saudáveis. Dessa forma, poderemos construir uma sociedade mais leve e mais feliz.
Luiz Carlos de Lima Ferreira
Médico Patologista