O livro do Zuenir Ventura- 1968, O que fizemos de nós. Faz uma reflexão da mudança de comportamento da sociedade brasileira. Com ajuda de psiquiatras e antropológos, ele traça um perfil da cabeça e do corpo do brasileiro.
Quanta diferença de quarenta anos atrás! A aparência tornou-se mais importante que o interior -, o que predomina hoje são os cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos. No passado Freud era moda, assim como Mao e Marx. Em certos meios, era difícil conversar sem empregar ou ouvir lugares-comuns psicanalíticos: transferência, repressão, recalque, ato falho, inconsciente, alieanado, engajado ou complexo de culpa. Hoje predominam os termos de origem biológica, como neurotransmissores, serotonina, sinapse, localização cerebral, redes neurais, plasticidade cerebral. O tempo passou – arroba”@” só servia para designar o peso – equivalente a cerca de 15 quilos – de produtos agropecuários, hoje é o sinal gráfico mais usado em todo o mundo.
O ontem, a forma de terapia mais recomendada em tempo de coletivismo era a “análise de grupo”. ”Assumir” – e hoje a terapia é “malhar”. Se resolvia todas as questões: “você precisa assumir” – fosse uma fraqueza, uma culpa, um desejo, uma preferência sexual.
A moda não é mais “fazer a cabeça”, mas o corpo. A busca do corpo perfeito criou uma indústria que mobiliza fábricas e laboratórios farmacêuticos, nutricionistas, cirurgiões plásticos, personal trainers, calçados e roupas especiais para caminhadas e corridas, fazendo proliferar por todo país as academias de ginástica.
Segundo Francisco Ortega , professor da UERJ, a compulsão consumista foi canalizada para compra de produtos de saúde, fitness e beleza, e o corpo tornou-se “o lugar da moral”. Dietas sem gordura, sexo seguro e malhações intermináveis impuseram ” novas coações ao prazer pós-moderno”. O resultado é que o interesse exagerado pelo corpo estaria gerando “desinteresse pelo mundo”, e a hipertrofia muscular estaria se traduzindo em atrofia social. “Não podendo mudar o mundo, tentamos mudar o corpo, o único espaço que restou à utopia, à criação. As utopias corporais substituíram as utopias sociais.”
Zuenir Ventura mostra que ” essa ideologia do corpo perfeito” estimula os estereótipos contra os que fogem ao padrão ideal: os gordos, feios, baixos,”deficientes” físicos. “A obsessão pelo corpo bronzeado, malhado, sarado e siliconado faz aumentar o preconceito e dificulta o confronto com o fracasso de não atingir esse ideal, como testemunham anorexias, bulimias, distimias e depressões cada vez mais comuns entre jovens e adultos da nossa sociedade”.
Um trabalho do antropólogo César Sabino no Rio de Janeiro, feito em academias da Zona Norte, constatou que a busca da forma ideal resulta num processo inalcançável. Frequentadores de academias de musculação que buscam a forma física perfeita através da ” malhação” – aqueles exercícios árduos e incessantes em que se submetem os músculos a provas de resistências e muitas vezes, de exaustão. Por mais “trabalhado” que esteja o corpo do praticante,” ele nunca se dará por satisfeito, querendo sempre perder adiposidade, definir o abdômen, aumentar tríceps e quadríceps”. Exige disciplina, frequência diária e dietas alimentares, com vitaminas, aminoácidos, proteinas e energéticos. Não se exclui nem mesmo o consumo ilegal de drogas, como anabolizantes ou “bombas”. “O corpo é considerado uma máquina que deve ser conectada a outras máquinas – os aparelhos de musculação – para ser aprimorado”. Uma das razões do sucesso das academias é a possibilidade de transformar, de superar as limitações da natureza. Por meio de exercícios e anabolizantes, você “esculpe um novo corpo”.
O trabalho do antropólogo mostra que os exercicios são variados e, no caso das mulheres, privilegiam certas partes do corpo consideradas pelos homens como “desejáveis”:coxas, cintura, e principalmente nádegas. Segundo antropólogo, a região dos glúteos é a que merece mais cuidados. As praticantes que mais se aproximam do ideal de mulher bonita, têm “cintura fina, pernas grossas e glúteos avantajados, tudo isso com a maior ausência possível de adiposidade, estrias e celulite”. Quando Sabino perguntou a elas “o motivo dessa obsessão calipígia”, obteve como respostas: “porque esta é a parte do corpo que os homens mais olham em uma mulher”. Não é difícil concluir que os homens se exercitam para si, enquanto as mulheres se exercitam para os homens.
Zuenir finaliza dizendo – Para uma época que se preocupa mais com o físico do que com a mente, eis um tema para debate: qual seria o verdadeiro corpo feminino brasileiro- o que é feito de músculos, os de ossos ou de carne?