Ainda é grande a polêmica, no meio acadêmico, entre correntes que defendem a existência de uma verdade/realidade e os relativistas que propõem a impossibilidade de apreender a real.
O debate extrapola os setores filosóficos e adentra até mesmo no campo das ciências médicas e exatas.
O artigo do físico e filósofo Victor J. Stenger expressa uma posição interessante sobre o tema. Veja abaixo.
Questionando a verdade e a realidade
por Victor J. Stenger
Tradução de Álvaro Nunes
Algumas tendências recentes nos círculos académicos puseram em questão as noções convencionais de verdade e realidade. Estes círculos alegam que todas as afirmações, científicas ou literárias, são apenas narrativas ― histórias e mitos que nada mais fazem que articular os preconceitos culturais do narrador. Segundo esta perspectiva, qualquer narrativa é tão boa quanto qualquer outra, desde que cada uma seja expressa na linguagem da sua cultura particular e contenha assim todos os pressupostos dessa cultura acerca da verdade e da realidade. Os textos não têm significado intrínseco. Pelo contrário, o seu significado é criado pelo leitor. Chega-se então à conclusão de que nenhuma narrativa tem validade universal e que a ciência “ocidental” não é excepção.
Os estudantes das escolas americanas, e não só, ouvem os seus professores de ciências sociais e de humanidades argumentarem desta forma. Os defensores da “medicina alternativa” usam frequentemente argumentos análogos para rejeitar a ciência como instrumento para determinar a verdade em assuntos de saúde.
A afirmação de que a ciência “ocidental” não é excepcional começa com a noção plausível, embora em última instância enganadora, de que os seres humanos não têm acesso a um mecanismo pelo qual possam saber a verdade sobre uma realidade objectiva que exista independentemente dos processos mentais humanos. É certo que a ciência confia nos processos intelectuais e nem sempre segue uma via clara e lógica para chegar às suas conclusões acerca da realidade. É igualmente verdade que nunca prova que estas conclusões são correctas. A ciência nada conhece com certeza acerca do mundo e apresenta sempre os seus resultados em termos de probabilidades ou verosimilhanças. Frequentemente, a escolha entre teorias científicas rivais baseia-se no gosto, na moda, ou em noções subjectivas de simplicidade ou apelo estético.
É um facto que os cientistas nunca podem ter a certeza quanto à “verdade” das suas teorias. Contudo, as previsões das teorias científicas são tantas vezes suficientemente próximas da certeza que todos apostamos nelas as nossas vidas, como quando estamos num avião ou na mesa de operações. Quando as previsões são tão fiáveis, podemos racionalmente concluir, se não provar, que os conceitos em que se baseiam têm de ter uma validade universal. Isto é, têm de algum modo de estar ligados à forma como as coisas realmente são.
Por exemplo, não podemos prever com total certeza o que acontecerá se saltarmos de um edifício alto. É sempre possível que aterremos numa caixa de penas que, por sorte, está pendurada numa janela do andar de baixo. Contudo, com base na lei da gravidade, podemos prever com grande verosimilhança que passaremos esse andar e atingiremos o chão com um som nada saudável. A lei da gravidade foi testada vezes suficientes para podermos concluir que o conceito de gravidade é “real”.
A realidade actua de forma a restringir as nossas observações do mundo, impedindo que pelo menos algumas delas sejam completamente ao acaso, arbitrárias, ou o que quer que seja que gostássemos que fossem. Embora muito do que observamos seja de facto ocasional ― muito mais do que a maior parte das pessoas se dá conta ― nem tudo o é. E embora possamos exercer certo domínio sobre a realidade, essa realidade não é meramente a criação dos nossos processos mentais. Em sonhos podemos saltar de um edifício e flutuar até ao chão ilesos. Ao pensar em saltar de um edifício podemos imaginar o que quisermos quanto ao resultado. Nas nossas fantasias, o Super-Homem pode voar e salvar-nos. Um avião com um colchão nas asas pode aparecer mesmo a tempo. Mas, na realidade, seja o que for que desejemos, caímos no chão.
Sem ser muito pedante a definir realidade, direi que as nossas observações diárias mostram com clareza que nós e os objectos que nos cercam estamos sujeitos a restrições externas que nem nós nem esses objectos podemos dominar completamente. Se pudesse dominar a realidade com os meus pensamentos, gostaria de ter vinte anos e ser tão arguto como agora. Mas não posso. Na ciência, usamos as nossas observações do que acontece quando não estamos a sonhar ou a fantasiar para fazer inferências razoáveis sobre a natureza do que origina as restrições que registamos com os nossos aparelhos de medida.
A física moderna sugere fortemente uma “realidade última” surpreendentemente simples e não-misteriosa, que pode não ser o que desejávamos, mas que é apoiada pelos dados que conhecemos. Além disso, esta realidade é muito semelhante ao que foi inferido por alguns pensadores notáveis do mundo antigo: um universo composto de objectos elementares que se movem no vazio. Chamo a isto realidade atómica.
Esta proposta vai contra a moda corrente. Esta moda repudia todas as tentativas, interiores ou exteriores à ciência, para descrever uma realidade objectiva e universal. Repudio essa moda. Onde a validade e certeza de certos conceitos antigos e modernos de verdade e realidade são negados, eu afirmo-os. Onde se argumenta que a ciência ocidental nada nos diz com significado profundo, afirmo que é o nosso melhor instrumento para descobrir as verdades fundamentais.
Muitos professores de ciências naturais, voltados principalmente para a investigação, ignoram os ataques à ciência e ao pensamento racional. Quando ouvem afirmar que a ciência é apenas outra narrativa implausível, rejeitam a noção por não ter sentido. Em vez disso, deviam denunciá-la.