No fim da década de 1990, o professor Oswaldo Porchat, experiente professor de filosofia da USP, descobriu que não havia sido um filósofo em toda a sua carreira, mas no máximo um historiador de filosofia.
Também concluiu que havia formado uma parte considerável dos professores de seu próprio departamento com esta mesma impressão equivocada sobre o fazer filosófico.
Escreveu, então, com quase 70 anos, um discurso com esta revelação para os estudantes e professores da USP.
Trechos a seguir.
“Errare humanum est, sed perseverare in errore diabolicum [errar é humano, perseverar no erro é diabólico], diziam os medievais.
Não quero ter parte com o diabo. Quero ter, no momento em que caminho a passo acelerado para os meus 70 anos, para o momento em que serei forçado a deixar a universidade, a coragem de rejeitar duramente meus erros passados, denunciar meus procedimentos equivocados, pedir humildemente desculpas pelas consequências infelizes que possam ter deles resultado. E tentar contribuir para que se busquem outros rumos. Para que a História da Filosofia, entre nós, comece a dar lugar finalmente à Filosofia.
(…) Dever-se-ia dar também atenção especial, porém, àqueles problemas filosóficos que são problemas para nossos estudantes, questões que naturalmente os preocupam. Aliás, inseridos que estão e não poderiam deixar de estar no mundo contemporâneo, muitos dos problemas desses jovens refletem compreensivelmente parte da problemática com que estão lidando os filósofos de hoje. Parece-me, por exemplo, que os problemas de filosofia moral têm aí um lugar especial. Têm acaso sido eles objeto importante de nossos cursos e atividades de ensino e pesquisa? Temo sinceramente que não.
(…) [É] muito desejável que nossos estudantes sejam fortemente incentivados, desde o início, desde o primeiro ano, a exprimirem livremente nos seminários, nos trabalhos e nas aulas os seus próprios pontos de vista sobre os assuntos tratados. A tomarem posição, a criticarem, a ousarem criticar, se isso lhes parecer ser o caso, mesmo as formulações dos grandes filósofos e suas teses.
(…) [E]m História da Filosofia a autoridade parece contar muito, em Filosofia a autoridade não conta nada. Seja qual for a minha erudição historiográfica, minha opinião filosófica conta tanto, na esfera do saber e no domínio das verdades filosóficas, quanto a de qualquer um de meus alunos, minhas performances “magistrais” não garantem a verdade do que eu possa afirmar.
(…) Há espaço de sobra nele [no departamento de filosofia] para a crítica e para a indispensável autocrítica. Basta abrir algumas salas que estão fechadas, as salas da discussão, da polêmica, do debate, da crítica, da autocrítica. Disseram-me que vocês têm as chaves.”
Discurso completo aqui: http://www.revistafundamento.ufop.br/Volume1/n1/vol1n1-2.pdf
A “queda da graça” do professor Porchat é, como ele sugere, revolucionária, e ainda extremamente relevante por vários motivos.
As coisas ainda estão bem como ele descreve. Muitos departamentos e professores de filosofia no Brasil ainda mantém um ambiente acadêmico hostil ao racionalismo. Pois é hostil ao racionalismo ensinar aos alunos que devem apenas comentar o que Fulano disse sobre Cicrano, não tentar criticar Fulano e Cicrano ou elaborar seus próprios argumentos com base nos erros ou descobertas de ambos. É hostil ao racionalismo pensar que pesquisa filosófica é comentário de obras de arte e associações vagas ou triviais de ideias repletas de nomes importantes e palavras de baixa frequência de uso na língua portuguesa, além é claro de neologismos dispensáveis e maneirismos de escrita e demais adornos desnecessários para quem de fato tem argumentos a apresentar.
O Brasil, talvez, nunca esteve tão necessitado de bons filósofos quanto hoje. A população de baixa escolaridade, apesar de amar a erudição e sonhar em ver seus filhos estudando, transita entre ideias da grande mídia, da igreja e do senso comum, como “bandido bom é bandido morto” e “sem Deus tudo é permitido”. Quando conseguem alguma educação, quase sempre recebem ideias repletas de preconceitos como o cientificismo. E são essas pessoas que pagam as bolsas de mestrado e doutorado de estudantes que passam anos nas universidades públicas para terminar com trabalhos que muitas vezes não têm qualquer compromisso com originalidade argumentativa ou mesmo a clareza (que não implica rejeição a qualquer jargão, mas implica que o jargão usado pela comunidade tenha algum escrutínio criterioso).
Isso não é justo. E não é justo que o cidadão leigo em filosofia tenha como personalidades filosóficas famosas em seu país figuras como Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé, que vivem de regurgitar senso comum com adornos linguísticos da norma culta.
O exemplo do professor Oswaldo Porchat Pereira é um exemplo de coragem e um exemplo a ser seguido. Que outras carreiras longas como a dele não sejam gastas em exercícios historiográficos fora de departamentos de história e cultos a personalidades mal travestidos de debate crítico.