A Decisão Enferma II

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Dependentes de álcool e outras drogas padecem de um dilema há muito conhecido por todos: o de postergar a decisão de parar o uso a droga. Algumas expressões são por demais conhecidas e já fazem parte do cotidiano de muitas pessoas: “essa foi a última vez que bebi” ou “depois dessa não bebo mais” e assim por diante. Essas afirmações são quase sempre precedidas de um consumo descontrolado ou exagerado de bebidas ou outras drogas e a pessoa, em geral, sente-se culpada e muito arrependida de ter abusado. E qual é nossa surpresa? Pouco tempo depois ou no próximo final de semana,  tudo acontece novamente, às vezes até pior que na semana anterior. E assim vai, dia após dia, semana após semana, mês a mês, ano a ano.

Pela dificuldade em cumprir suas promessas, perdem o crédito quando dizem que vão parar, especialmente na família. Muitas vezes, os familiares atribuem o desejo de parar à famosa ressaca da segunda-feira, como se fosse conversa fiada: “fulano só diz isto depois da ressaca”.

Esse dilema pessoal, verificado entre os dependentes de substâncias como álcool e de drogas, foi por muitos anos entendido como um problema de caráter ou um problema moral. Muitos os consideravam – e ainda hoje, lamentavelmente, – como fracos, frouxos, covardes, sem vergonha e mentirosos.

O próprio sujeito que tem esse problema se sente muito mal com tudo isso, pois percebe que bebendo e consumindo drogas vai gerar mais problema a cada dia que passa e que se não mudar, a situação vai piorar. Ocorre que, muitas vezes, o seu desejo sincero é o de deixar de beber ou de usar drogas, pois sempre exagera, mesmo assim não sabe o que o leva a repetir tudo de novo, apesar de todos os aborrecimentos e constrangimentos que beber demais provocara.

Passam então a viver com mais um problema angustiante, de não conseguir, por si, mudar a situação que tanto o prejudica e aos outros.

Muitas contribuições vem surgindo nos últimos anos do ponto de vista médico e psicossocial, procurando esclarecer essa dificuldades e os conflitos que isso provoca nos dependentes e seus familiares. Todavia, embora haja muito esforço nesse sentido ainda permanecem obscuras as causas  desse problema.

Do ponto de vista psicopatológico, a dependência de drogas compromete uma das aspirações fundamentais dos seres humanos que é a de ser livre, isto é, de poderem ter o domínio pleno de sua vida e disporem amplamente de sua consciência e por isso mesmo garantir sua autonomia para escolher e decidir sobre o que querem e para onde querem ir. Essa prerrogativa garante sua saúde mental e sua sobrevivência.

De tal sorte que, quando alguém está dependente de uma droga, conforme vimos acima, o que está em jogo é sua capacidade de tomar decisão, que nesses casos está muito prejudicada, ao ponto dessas pessoas não a executarem corretamente.

Na realidade, não é tão nova esta constatação clínica, pois há alguns anos se sabia que uma das maiores dificuldades apresentadas pelos dependentes químicos era a de decidir a seu favor, isto é, tomar uma decisão que interferisse diretamente nos mecanismo intrínsecos da compulsão para consumo da droga da qual dependem.

Tomar decisão é uma atitude que tem a ver com o equilíbrio neurofisiológico e comportamental, de tal forma que qualquer alteração que haja nas áreas cerebrais que controlam esta função cognitiva acarretará prejuízos em diferentes atividades mentais. A tomada de decisão implica também em integrar estímulos recebidos, relacionar valores, verificar objetivos e o estado emocional e situação social. Envolvem flexibilidade e planejamento e, sobretudo pensar nas consequências sociais e pessoais de sua atitude.

Sobre isso, não há dúvidas que nos últimos anos a neurociência tem oferecido relevantes contribuições para melhor se compreender a fisiopatologia de diferentes comportamentos psicopatológicos.

Hoje se sabe que dependentes químicos apresentam alterações severas nas áreas cerebrais responsáveis pelo processo de decidir sendo um dos transtornos mas bem estudados sobre esses doentes. Uma das mais importantes contribuições da neurociência, ramo da ciência que estuda essas assunto, ocorreu há pouco mais de 15 anos, quando os cientistas identificaram a região cerebral denominada córtex órbito-frontal, área responsável por esta disfunção na tomada de decisão.

Essa região, anatomicamente, compõe uma superestrutura cerebral das mais importantes para o comportamento humano. Trata-se de uma região neurofuncional, que torna o homem diferenciado dos outros animais.

É uma parte do córtex cerebral que está situada logo abaixo dos olhos. O papel desta região  não pode ser definido precisamente, pois o comportamento que depende dessa região não pode ser categorizado facilmente. Todo comportamento tem relação com córtex órbito-frontal, mas não se pode classificar a sua função em relação ao comportamento em uma única categoria, justamente porque ela estabelece amplas ligações neurofuncionais com dezenas de outra regiões cerebrais responsáveis por inúmeras atividades humanas.

Portanto, o córtex órbito-frontal é uma região extremamente importante para processar, avaliar e filtrar informações sociais e emocionais e garantir nossa saúde mental. Lesão nesta área ocasiona déficit na habilidade de tomar decisões que é o que ocorre entre os dependentes de álcool e doutras drogas.

Esses novos achados abrem janelas para a conquista de novos tratamentos, bem como inauguram novas perspectivas e oportunidades de se compreender melhor a clínica da indecisão patológica desses enfermos.

 

 

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