Joan Baez reservou o mês de março de 2014 para uma turnê pela América do Sul. Cantou em Buenos Aires (6 e 7), Montevidéu (11) e Santiago (14 e 15) antes de chegar ao Brasil para shows em Porto Alegre (19), Rio (21), São Paulo (23 e 24) e Recife (28).
No dia 1º de abril, enquanto o Brasil estiver lembrando o 50º aniversário do golpe de Estado que derrubou o governo João Goulart, Baez estará cantando na Cidade do México.
Mesmo que não tenha sido planejada, a sua passagem pelo país em data tão próxima a esta efeméride deu aos shows um caráter especial. Como se sabe, Baez deveria ter cantado no Brasil em 1981, mas o show foi vetado pelo regime.
Em Buenos Aires, a cantora pediu permissão ao público para “ensaiar” no palco a canção que planejava cantar em seus shows no Brasil: “Cálice”. A música de Chico Buarque e Gilberto Gil, de 1973, é um testemunho clássico dos esforços feitos nos anos negros da ditadura para emplacar letras com mensagens fortes de protesto protegidas por duplo sentido. “Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”.
Além desta, Baez cantou outras músicas em português. Primeiro emendou duas seguidas, o xaxado “Mulher Rendeira” e a marcha de Carnaval “Acorda Maria Bonita”, ambas repletas de referências a Lampião, sua mulher e a luta dos chamados “cangaceiros” no Nordeste.
Já próximo do fim, no momento mais inesperado do show de domingo (23), Baez chamou ao palco Geraldo Vandré, lembrando que se trata de “um mito” brasileiro. O músico é autor de “Pra não Dizer que não Falei das Flores”, apresentada em um festival em 1968 e logo transformada em hino da juventude contra o regime militar.
A música mudou a vida de Vandré, levando-o ao exílio e, a partir de 1973, de volta ao Brasil, a uma reclusão quase total. Ao lado de Joan Baez, que cantou o seu “hino”, foi aplaudido de pé, mas permaneceu estático, com um casaco verde abotoado até o pescoço e um boné na mão.
No penúltimo bis, a cantora chamou ao palco outra figura simbólica, o hoje senador Eduardo Suplicy (PT-SP). Em 1981, quando tentou cantar no Brasil, Baez conheceu o então deputado estadual e estabeleceu com ele uma relação objeto de lendas e histórias engraçadas (leia aqui).
Já há muitos anos, Suplicy tem o hábito de cantar “Blowin´ in the Wind”, clássico de Bob Dylan, em eventos públicos, sem acompanhamento. Ao lado de Baez, a sua desafinação soou ainda mais gritante, mas não deixou de ser um outro momento bonito do show (apesar das vaias que recebeu de parte da plateia).
O repertório do show inclui várias outras jóias do universo da música folk e de protesto, que marcaram a longa carreira de Joan Baez. Ela cantou “Gracias a la Vida”, “Joe Hill”, “Diamonds and Rust”. Dedicou “Deportee”, música sobre deportados mexicanos mortos num acidente de avião, a Pete Seeger, morto este ano. Também cantou “Farewell Angelina” e “It´s All Over Now, Baby Blue”, ambas de Bob Dylan (a segunda provavelmente escrita para ela).
A sua voz não é exatamente a mesma, mas continua potente e vibrante. Sua passagem pelo Brasil ficará marcada por este gesto essencial – o de lembrar ao público brasileiro de uma parte do passado que não devemos esquecer.
Deu no UOL