O enredo do show já estava armado. Produtores de programas importantes da tevê brasileira fizeram e fila para ligar para a assessoria de imprensa do Santos. Eles querem porque querem juntar Aranha e Patricia Moreira da Silva. Garantir pontos importantes no IBOPE com a reconciliação em rede nacional.
A mulher loira que xingou o negro goleiro de macaco. E que causou a eliminação do time que ‘é sua paixão’ da Copa do Brasil. O reencontro talvez com a músicaBlack and White de Michael Jackson tocada no piano. A plateia, escolhida a dedo, formada metade por brancos e outra metade de negros. Seria a garantia de primeiro lugar no horário. Os patrocinadores ficariam eufóricos. Quem sabe esses produtores conseguissem um aumento?
Ou então os apresentadores de um programa dominical ficariam no meio dos dois. De um lado, Patricia soluçando, chorando muito ao falar do caso. Não derramar uma só lágrima como na sexta-feira seria detalhe. Do outro, Aranha, depois dela pedir 18 vezes desculpas ao Grêmio e à sua torcida, chegaria a sua vez. No final da entrevista dupla, o câmera, já instruído previamente, faria o foco nas mãos tremendo da torcedora. O goleiro esticaria as suas. Viria o abraço. Com outras duas câmeras postadas. Uma para focalizar o choro sem lágrimas de Patrícia, a outra, Aranha emocionado. Aí sim, noite história. Sem esquecer, lógico, o logotipo de ‘exclusivo’ do início ao fim do encontro do século.
Mas graças à consciência de Aranha, nada disso vai acontecer. O máximo que se permitiu foi dizer que perdoa Patricia após o jogo de ontem contra o Vitória. Repórteres não esportivos estavam no Pacaembu esperando a chance de falar com ele para garantir a reconciliação. O jogador foi firme. Percebeu que a situação estava se invertendo. O agressor virava vítima e a vítima, o agressor.
O perdão ‘de boca’ a Patricia era necessário. Mas ele deu um golpe perfeito no racismo. Disse que perdoava a loira torcedora que o chamou de ‘macaco’. Só que não aceitaria encontrá-la. Não se submeteria ao teatro barato que a televisão estava tentando armar para ganhar alguns pontos a mais de Ibope. Aranha foi perfeito no complemento. Colocou as coisas nos seus devidos lugares.
“Queriam que eu desse o perdão sendo que ela não tinha pedido desculpa. Não tenho como antecipar as coisas. Desde o ocorrido, ela mostrou, amigos mostraram que não é uma pessoa racista, apesar de ter tomado um ato racista. Em vez de expor isso logo, ela sumiu, deletou rede social, não pediu desculpa. Demorou muito para tomar essa atitude.
“Perdoo, mas ela vai pegar pelo que fez. Do mesmo jeito que ela pediu perdão, estou desculpando, perdoando. Infelizmente, vai ter que pagar. Por mim, como pessoa, perdoo, sim. Mas, quando você erra, tem as leis.”
Aranha apela para as leis que ele mesmo enfrentou. A vida de negro no Brasil não é fácil. Vivemos em uma sociedade hipócrita. O goleiro havia garantido ter sofrido na pele a dor do racismo. E ele não ficou apenas em vizinhos de classe média alta que não dizem bom dia a um negro.
Aranha contou ontem para os repórteres e produtores que queriam a reconciliação hoje em rede nacional. Ele morava em Campinas e estava com amigos negros e um nordestino dentro de um carro. Estavam levando uma criança branca para um hospital. Foram vistos por uma pessoa dentro de um ônibus. Ela não se conformou com a cena e fez uma denúncia anônima à polícia. Passando as placas do carro. A certeza do denunciante, os negros estavam sequestrando a criança. A PM deteve o grupo.
“Eles chegaram e falaram que era para eu ficar quieto porque eu era suspeito. Depois me algemaram, me deitaram no chão e perguntaram onde estava a arma. Passei muita vergonha. Uma pessoa até me reconheceu.” O goleiro disse à Folha, em 2005.
Foi algemado, tomou um soco e um chute. Só foi solto quando ficou constatado que era jogador de futebol da Ponte Preta. O goleiro ficou revoltado e fez Boletim de Ocorrência contra os policiais. O caso foi arquivado. Nada aconteceu com os soldados.
O racismo continuou seguindo Aranha. Ele casou com Juliana Costa. Ela é branca e tem três filhos brancos de outro relacionamento. O goleiro e ela têm a filha Sofia de três meses. Já havia passado por alguns constrangimentos na sua vida fora dos gramados. O que mais lhe incomodou no grito de “macaco” de Patricia foi o sofrimento de sua família. Todos ficaram muito chocados com a cena da partida contra o Grêmio.
Choraram, mas evitaram entrevistas. Decidiram não transformar o caso em um show de televisão. Sua mãe, Benedita Duarte, só aceitou falar para uma emissora esportiva a cabo. “As pessoas que falaram têm a alma podre”, disse para a ESPN Brasil. Ela mostrou sua tristeza também com o árbitro Wilton Moreira. De uma maneira absurda, ele não viu os torcedores gremistas e não ouviu os gritos de ‘macaco’, ‘preto fedido’. Detalhe importante: Wilton é negro. Acabou suspenso por 90 dias pelo STJD.
Patricia teria motivos para se arrepender Não sabia com quem havia mexido. Mario Lúcio Duarte Costa decidiu não agir como o ídolo de sua Benedita: Pelé. O maior jogador de todos os tempos fazia de conta que não ouvia os gritos racistas que várias torcidas dirigiam a ele. Omisso, acreditava que sua grande preocupação era apenas jogar futebol. Perdeu inúmeras oportunidades de falar contra o racismo para o mundo todo. Teve incontáveis chances, mas preferiu se calar.
“Se o Pelé tivesse um pouco de noção ou sensibilidade, faria uma revolução neste caso [racismo]. Ele tem mais repercussão que líderes políticos e religiosos. Mas não, prefere ficar falando besteira. E, na boa, nem quero mais falar dele. Não vale. Temos que falar de Muhammad Ali, Martin Luther King, Nelson Mandela… Estes, sim, foram grandes líderes que aproveitaram o espaço que tinham para brigar pelos negros. Abdicaram de suas vidas e compraram brigas sérias, coisa que o Pelé deveria fazer e nunca fez”, desabafou Paulo César Caju ao UOL.
Patricia e seus advogados conseguiram o perdão de goleiro, obrigatório por ele ser ‘cristão’. Mas a loira não terá o abraço do jogador em rede nacional. Nem as tevês terão os pontinhos a mais que tanto desejavam. Está cada vez mais evidente que ela escolheu a pessoa errada para chamar de ‘macaco’. Aranha está entrando para a história na luta contra o racismo neste país. Indo muito, mas muito além do que Pelé jamais se atreveu a ir…
Deu no UOL