O ato banal de rasgar pela primeira vez o lacre do seu novo disco, “Corpo de baile”, enquanto toma café no Museu da República, esconde, no sorriso quieto, dez anos de trabalho da paulistana Mônica Salmaso. Questionada sobre a atual conjuntura da Música Brasileira, a cantora diz estar pobre.
— A música popular brasileira hoje está pobre e nivelada por baixo. Pobre de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. É aquilo que a indústria, em crise, tentando sobreviver ao naufrágio, produz. É feio. Não é dessa água que a gente vai beber. Não é que as cantoras ou os cantores vão mal, mas é um cenário que não incentiva a busca do conhecimento, da qualidade ou da consciência do que você faz — lamenta.
Um fenômeno, segundo ela, ligado à dificuldade, hoje, de dar o pontapé inicial a uma carreira diante da pressão por uma certa “viabilidade”.
— Na maior parte das vezes a porta de entrada é algo que nada tem a ver com a pessoa. Aí vem alguém e diz: “Você vai ser fulana de tal”. Ou então: “Você vai substituir aquela-que-se-foi, vai ser a nova não-sei-quem”. As cantoras que compõem o novo quadro musical são reféns de gente que movimenta a cultura e fica criando esses negócios. Cássia Eller morreu, vamos inventar outra. Aí, vem uma fila de Cássia Eller. Eu adorava. A Cássia não tem nada a ver com meu jeito, mas havia uma verdade ali.
A análise leva Mônica a um encontro de 15 anos atrás, convocada por um grande empresário à cata de uma nova cantora de sucesso.
— O cara pegou um papel e desenhou a pessoa que eu deveria ser: 30% dessa cantora, 15% daquela. Um CD com três versões de sucessos internacionais, uma pitada autoral, 10% pop e um molho romântico. Eu já tinha lançado os “Afro-sambas”, “Trampolim” e “Voadeira”, ganhado prêmio e tal. Disse a ele que o que eu fazia era pequeno, mas eu gostava, queria continuar. Ele respondeu que meu trabalho era “muito europeu”. Perguntei se ele não ficaria satisfeito em vender 200 mil, e ele disse que não, que sua estrutura só era para 1 milhão. “Mas eu quero fazer do meu jeito!”, insisti. “Então, vai fazer na Europa.” Agradeci, fui embora e continuei fazendo, no Brasil, do meu jeito. Se é para não ser eu mesma, prefiro outra profissão.
‘A INTERNET AINDA VAI FLORESCER’
Atada ao seu nicho, que se constrói com o tempo, Mônica vive de seus shows (semana passada levou ao Teatro Rival seu tributo a Vinicius de Moraes) e planeja apresentar o novo disco ao vivo no ano que vem, na dependência dos editais que envolvem hoje a carreira de palco. No horizonte da audição musical, vê muita desolação, mas vislumbra uma resistência subterrânea que ainda vai germinar.
— O pessoal vem sendo forçado a fazer qualquer coisa que apareça rápido e “monetize”. Isso mata a fertilidade. Por outro lado, por conta disso, à medida que lojas de discos morrem, que a ponte para as multinacionais vai ruindo, a internet começa a abrigar algo que ainda não é claro, mas que, como num asfalto abandonado que racha e é tomado pela floresta de novo, vai florescer em algum momento. Acredito na força da natureza das coisas, no poder do desejo de criar.
Em meio à aridez que vê, Mônica segue, e se fia em suas estrelas-guias, cada qual numa gaveta:
— Gal, Bethânia, Elis, Clara Nunes, que ouço desde criança, são vozes que moram num lugar de referência, de respeito, intocáveis. Já Zizi me ensinou a ouvir os músicos e a aprender com eles. Ney Matogrosso, por outro lado, é o exemplo de como um pulso original pode mover o público. Mas, quando eu crescer, quero mesmo é ser Nana Caymmi, chegar a uma expressão vocal que não se preocupe em acertar, livre e exata como a melhor e mais experiente cozinheira.
Deu em O Globo