Vanguarda e tradição: a prosa de Simone Campos

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Vanguarda e tradição: a prosa de Simone Campos

Autora é um dos destaques femininos da nova literatura brasileira que estará na Feira do Livro de São Luís (FeliS)

EDUARDO JÚLIO
poeta e jornalista

Na Feira do Livro de São Luís (FeliS), a nova geração de escritoras brasileiras será representada por quatro nomes, um deles é Simone Campos, 32, autora carioca que já escreveu cinco livros, sendo o mais recente o romance “A Vez de Morrer” (Companhia das Letras), que discute questões atuais como revenge porn e especulação imobiliária.

Escritora Simone Campos. Foto: Divulgação
Escritora Simone Campos. Foto: Divulgação

O livro narra a instigante história da personagem Izabel, que deixa as conturbações da cidade grande – no caso o Rio de Janeiro, capital – em busca de tranquilidade na região serrana do estado, no sítio quase abandonado do avô. No local, a jovem acaba enfrentando conflitos inesperados nas situações cotidianas.

Simone Campos vai conversar com o público de São Luís no dia 7 de outubro, às 18h30, no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho. Ela estará ao lado da pernambucana Micheliny Verunschk e da maranhense Jorgeana Braga, debatendo sobre os diferentes olhares femininos na nova literatura brasileira.

O apreço da autora pela literatura se desenvolveu cedo, tanto que o primeiro livro “No Shopping” (7 Letras) foi lançado em 2000, quando ela tinha 17 anos. Um detalhe: a publicação está em sua terceira edição.

Mestre em literatura comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a escritora atualmente faz doutorado na mesma instituição, abordando jogos em conexão com literatura. E a referência aos games está presente no livro/jogo “OWNED – Um Novo Jogador”, lançado em 2001.

O trabalho é interativo: o leitor monta a história de acordo com as possibilidades apresentadas por Simone Campos, em um modelo semelhante ao criado pelo escritor argentino Julio Cortázar. No mínimo, uma curiosa engenharia literária.

Para escrevê-lo, ela estudou lógica, matemática e programação. O livro/jogo levou dois anos para ser concluído e está disponível gratuitamente na internet, na página novojogador.com.br

Se você ainda não conhece Simone Campos, vale muito a descoberta. Nós fizemos alguns questionamentos para esta escritora que abre as portas da literatura, realizando conexões com áreas conhecidas, mas ainda pouco exploradas.

O romance “A Vez de Morrer” vai envolvendo o leitor lentamente, como o próprio ambiente em que se passa. Este ritmo gradativo foi intencional?

Foi sim. Eu acredito que o tema do texto deve se refletir na forma, nem que seja por contraste. Se eu conseguisse fazer uma história em que muita coisa acontece e ao mesmo tempo nada acontece, em que sempre há uma promessa de ação logo na esquina, sei que o leitor ficaria envolvido. Rechear o livro de ação mirabolante às vezes pode ser cansativo — ou apenas o recurso de quem não conhece outros recursos, mais sofisticados, para prender o leitor. Para largar mão da ação frenética é preciso ter lido muito, e confiar no seu leitor.
Há também o problema oposto: autores que não assumem que pretendem cativar o leitor. Não assumem nem para si mesmos! Me pergunto, então, por que publicam (tornam públicos) seus livros. Eu assumo que quero, sim, que o leitor leia meus livros e tire algo da experiência. Que não passe em brancas nuvens.

EDUARDO JÚLIO: O livro faz uma crítica sutil a certos aspectos sociais do país, em especial a valores, costumes e preconceitos da atualidade. Como você observa esta situação?

SIMONE CAMPOS: Acho que as mulheres têm tido um grande quinhão nessa observação social astuta em forma de história. O filme de Anna Muylaert, Que horas ela volta?, com Regina Casé e Camila Márdila, é um grande exemplo de ficção nacional recente com um olhar penetrante sobre questões sociais sem ser didático, e que põe o dedo na ferida. Especialmente por tratar a classe C-D como sujeito, retratando o mundo classe A-B visto também “de fora”, pelos seus empregados e caseiros que — surpresa! — têm vida e brilho próprio, preocupações próprias, valores próprios. Talvez pelo nosso olhar quase não ser considerado o olhar principal em histórias contadas por homens brancos de classe média-alta, a gente tenha mais empatia para contar histórias que envolvam outras minorias (e para incluir mais mulheres agentes, com preocupações próprias, nessas histórias).

EDUARDO JÚLIO: Você publicou “OWNED – Um novo jogador”, um livro/jogo que foge à forma tradicional de um romance, mas em “A Vez de Morrer” você seguiu um formato, digamos, “conservador”. Fale sobre estas possibilidades literárias.

SIMONE CAMPOS: As pessoas que conhecem só um livro meu se surpreendem com os outros, pois vario muito de tema, estilo, tratamento. Gosto de experimentos e ousadias literárias. Às vezes a maior ousadia pode ser retomar a tradição. Achei que seria bem divertido, para mim e para o leitor, escrever um romance com tropos do século XIX (e até anteriores), mas passado na atualidade, com Tinder e o escambau.
A vez de morrer ser realista não significa que agora eu vá escrever só assim. Há quem trate isso como “sinal de maturidade”, que agora vou escrever só “coisas sérias”. Bem, meu próximo projeto é uma graphic novel de realismo fantástico baseada em Borges, Lovecraft e Philip K. Dick em parceria com uma desenhista de origem nipônica. Mas ressalto que para mim tudo isso é muito sério.

EDUARDO JÚLIO: Para criar “OWNED” você estudou lógica, matemática e programação. Como foi esta experiência?

SIMONE CAMPOS: Eu estava me virando bem com o fluxograma em quadro branco (há um vídeo no YouTube, basta procurar “fluxograma OWNED” que você acha). O problema é que eu não estava conseguindo terminar a história. OWNED era um livro-jogo em que dou opções ao leitor: “como você quer que a história prossiga? Por aqui ou por ali?” E chega-se a 17 finais diferentes… Eu queria que cada percurso possível fosse uma história coerente, e que a história total, a soma de todas as histórias, também tivesse uma única explicação coerente. Com essas questões em mente, descobri uma aula na PUC-Rio, ministrada pelo prof. Oswaldo Chateaubriand, sobre filosofia da matemática, que se ocupa exatamente dessas questões, mas voltadas para a matemática. Foi aí que descobri que tudo que eu dava como certo na matemática, como a ordem dos números, as quatro operações, os conjuntos, o infinito, não tinha uma única explicação coerente — e que a soma de todas as coisas possíveis na matemática nem podia ter! Então me inspirei na matemática e desisti desse negócio de “única explicação coerente para a soma das histórias possíveis” no meu livro. Aprendi uma humildade. E consegui terminar o meu livro. No fim, há três explicações possíveis e mutuamente excludentes para a soma de todas as histórias possíveis em OWNED.

EDUARDO JÚLIO: Existem outros autores no Brasil dialogando com a tecnologia?

SIMONE CAMPOS: Devem existir, mas não é minha área de pesquisa, então não estou muito a par. Sei que há uma porção de jogos nacionais. Joguei um de ficção interativa chamado Soul Gambler, e estou para jogar o Chroma Squad, jogo nacional inspirado nos tokusatsu, aqueles heróis japoneses que passavam na TV Manchete.

EDUARDO JÚLIO: São muitos os novos nomes da literatura brasileira, quais os que você gosta?

SIMONE CAMPOS: Gosto do Daniel Galera (Mãos de cavalo), da Beatriz Bracher (Azul e dura), da Socorro Acioli (A cabeça do santo), do Santiago Nazarian (Biofobia), da poeta Alice Sant’Anna (Ilha da decepção), entre muitos outros.

EDUARDO JÚLIO: O mercado editorial brasileiro viveu um bom momento dos anos 2000 até hoje, quando muitos talentos tiveram a possibilidade de ser publicados e conhecidos. Você acredita que a atual crise econômica vai afetar este avanço?

SIMONE CAMPOS: Acho que estamos vivendo um momento de saturação do mercado. Muita gente publicando/querendo publicar, pouco leitor. Então muitas editoras estão tendo que diminuir o ritmo de lançamentos, até porque não adianta lançar trinta livros por mês e ter divulgação e oportunidade de distribuição só para 10% disso. Vai ficar quem for paciente e souber conquistar o leitor (ou for uma pessoa influente por outros motivos, tipo ser uma celebridade…).

EDUARDO JÚLIO: Você separa o seu gosto literário por época. Na atualidade, você incluiu, por exemplo, escritores como Salman Rushdie e David Foster Wallace. Comente um pouco sobre as suas principais referências, independentemente do período.

SIMONE CAMPOS: São ecléticas, não é? Repare que há cinema, quadrinhos, televisão… não incluí videogames mas foram muito influentes também, jogo desde pequena… E tanto coisas independentes quanto populares. Quando era pequena, li traduções de livros em português de Portugal herdadas do meu avô e amigas da minha avó… isso me fez conhecer a língua portuguesa mais a fundo. Gosto de obras que brinquem com a linguagem, que façam rir e pensar de formas inesperadas; isso é uma constante até hoje. Não sou muito de culto a personalidade, é apenas mais fácil listar autores do que obras, mas não gosto de tudo que todos eles fizeram.

EDUARDO JÚLIO: Você me falou que tem um avô maranhense. Qual a sua expectativa em relação à Feira do Livro de São Luís?

SIMONE CAMPOS: Estou bem animada para a Feira. Meu avô se chamava Elmar Campos, filho de Eleazar Campos, que governou o estado do Maranhão no fim dos anos 30. Izabel, a personagem do meu livro, tem o sobrenome Jansen, do seu avô paterno, que não aparece na história — o dono do sítio é o avô materno. Sei que é o sobrenome de Donana Jansen, que foi uma pessoa real e hoje é uma assombração quase “oficial” de São Luiz. Conheço a história violenta dela e achei que se encaixava com outra inspiração inicial para a Izabel, a Erszébet Báthory, condessa húngara que é considerada a versão feminina do conde Drácula. Eu quis usar nesse livro o tema ultrarromântico do vampiro, na forma de alguém cujos antepassados têm uma história violenta e opressora, mas precisava de um sobrenome nacional significativo e ligado a uma mulher. Aí escolhi a Donana.

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