Poucos discos como Maria Fumaça da banda Black Rio estão presentes tanto na discografia obrigatória de colecionadores de música instrumental brasileira e jazz, quanto dos DJs de hip hop e música eletrônica. Enquanto um vinil da edição original norte-americana, da Atlantic, chega a ser vendido por U$ 500 (cerca de R$ 1.160), a brasileira Polysom relançou recentemente o vinil de 180 gramas (R$ 89,90).
O relançamento é mais um desdobramento do culto à banda que imprimou brasilidade no funk e soul, tornando-se referência em um espectro que vai do hip hip dos Racionais Mcs, grupo do DJ KL Jay, às batidas quebradas do DJ Marky.
“Esse disco é muito louco porque Maria Fumaça era tema daquela novela Locomotivas. E era um disco de funk mesmo, porque no Rio, nessa época o Rio era forte, existiam muitas festas de soul. Tinham até aqueles discos do Big Boy, Ademir Lemos, tinham esses caras aí. Existia uma cena grande em São Paulo dessa galera, Chic Show, Zimbabwe… Mas esses caras do Rio eram fortes”, relembra Marky, maior nome brasileiro da eletrônica.
“Em mim ele bateu em três teclas. Eu era moleque, primeiro eu lembro que era a abertura da novela. E tinha a segunda música que era meio hit que os caras da minha rua tocavam, mas era uma outra versão. Na verdade o que os caras tocavam era o Uncle Funk do (Eumir) Deodato, e que na Black Rio é Mister Funk Samba. O Deodato, na verdade, acabou fazendo uma outra versão dessa música. Mudou o nome, mas como o Deodato estava lá fora, era uma peganda mais groove, uma pegada funk, mas meio jazz. Tem esse contratempo. E a terceira para mim foi Casa Forte, do Edu Lobo, que é do disco”, conta o DJ, conhecido por seus sets de drum´n´bass, mas que é uma enciclopédia musical, conhecedor de diferentes gêneros, como jazz, soul, funk e música brasileira.
Já KL Jay também aponta a importância do disco. “Para mim eles são tão importantes quanto os grandes: Tim Maia, Jorge Ben, Djavan, Gilberto Gil, são tão importantes quanto”, diz. Maria Fumaça tem um lugar especial na estante e na memória afetiva para KL Jay, da mesma maneira que para Marky. “Ele deu início às minhas audições de música soul brasileira, funk e soul brasileira. Não só deu início como somou na coleção. É um disco que é famoso nas rodas dos DJs”, levanta.
DJ do grupo que é “apenas” o maior nome da música brasileira hoje, KL Jay sustenta que o preconceito afastou o ouvinte brasileiro de um tesouro apreciado mundialmente. “O Brasil é preconceituoso, racista. Faz parte da cultura do Brasil ser racista e preconceituoso, os artistas negros, os pretos, sempre foram rejeitados, o país sempre quis esconder isso aí”, dá a letra.
Entre muitas inovações que Maria Fumaça e a Black Rio trouxeram para a música brasileira está a maneira como Claudio Stevenson tocava guitarra, especialmente na divisão rítmica e na criatividade de aproximar o instrumento até mesmo da cuíca. Stevenson, que morreu em 87, tem seu legado levado adiante por Livia Stevenson, sua irmã.
“O Claudinho era muito novo. Tinha só 21 anos quando gravou esse primeiro disco da Banda Black Rio. Os outros musicos tinham entre 27 a 33 anos”, aponta.
“Ele era um cara carinhoso, tranquilo, engraçado e muito centrado. Estudava música muito sempre minuciosamente, desde Valdir Azevedo a George Benson. Era muito querido por todos. Faz muita falta por aqui. Sempre encontro alguém que tem uma história bacana pra contar. Isso é muito especial pra mim. Espero que do ‘segundo andar’, onde ele está, que esteja acompanhando o relançamento e torça para que o Brasil consiga finalmente curtir o som como a turma fora do Brasil faz”, afirma Livia.
Sobre como era o irmão na intimidade, ela conta que o músico era guiado pelos sons. “O Claudinho era apaixonado por música. Nao me lembro de nunca tê-lo visto ficar sem tocar nenhum dia desde que botou a mão no primeiro violão. Ele tocou praticamente todos os dia de sua vida. Fomos criados em Ipanema e morávamos em frente ao Tom Jobim. A música estava em toda a parte”, afirma, de Nova York, onde trabalha como chefe de cozinha e com negócios relacionados ao meio musical.
Livia afirma também se manter próxima dos músicos da banda original. “Faço o trabalho de administradora da banda e tenho um relacionamento muito íntegro com todos os músicos que fizeram parte da banda. Somos uma família”, compara.
“Tivemos quatro músicos importantissimos e muito queridos que faleceram, o Barrosinho (trompete), Claudinho Stevenson, Luiz Carlos Batera e o Oberdan Magalhães (saxofone). Todos os que estão por aqui continuam trabalhando dentro e fora do Brasil com artistas brasileiros e estrangeiros. Eles são: Jamil Joanes (baixo), Cristovão Bastos (piano), Darci Trombone, Lúcio Trombone, Paulinho Black, Jorjão Barreto (teclados)”, aponta Livia.
Para a irmã de Claudinho, a atual formação da Black Rio não representa o legado do grupo. “A nova Black Rio surgiu sem o nosso conhecimento e consentimento. O filho de um dos músicos fundadores da Black Rio vem fazendo um trabalho que é dele e não da Black Rio original. Acho muito bacana filhos de músicos tocarem e terem a influência do trabalho de seus pais. Mas sempre respeitanto o espaço do próximo. É como se o filho do John Lennon resolvesse recriar os Beatles. Pela forma como a nova Black Rio foi criada, infelizmente não há como abençoarmos este trabalho”, diz.
Livia opina que o vanguardismo do grupo foi uma barreira para o Brasil do terror da ditadura. “O Brasil em 1977 não estava preparado para ouvir e dançar a musica instrumental da Black Rio, como ainda não está! Haja visto o Bicho Baile Show com o Caetano Veloso. Uma obra de arte a fusão da Banda com o trabalho do Caetano que infelizmente nao teve muito sucesso em 1978. Era um show ao vivo onde as cadeiras do teatro Carlos Gomes foram retiradas para dar lugar à dança. Levariam muitos anos até que o público entendesse o que foi feito de verdade”, constata.
Em seguida, ela põe o dedo na ferida. “O Brasil ainda está engatinhando. Existe uma elite que ouve e aplaude esse tipo de trabalho, mas é muito pequena comparada com a população do pais. O brasileiro só consegue ouvir e aplaudir se tiver letra. Fora do Brasil as pessoas ouvem se emocionam compram e gostam da música instrumental.”
A irmã do guitarrista também faz uma revelação que pode ter uma carga histórica, que seu irmão usou uma partitura para gravar o Maria Fumaça. Círculos de pesquisadores sempre sustentaram que as gravações haviam sido feitas sem um “plano de voo”, como a própria Livia aponta: “Esse disco foi praticamente gravado sem partituras há 36 anos. Na base do improviso mesmo. Existe só uma partitura que foi usada no estúdio que era do meu irmão e que guardo com muito carinho”, diz.
Para ela, o segredo do sucesso do álbum deve-se ao à amizade e à criatividade dos músicos envolvidos no registro. “Acho que paixão pelo ritmo, a união dos músicos e a forma como eles harmonicamente usaram os elementos do samba, jazz e funk. Foi uma fórmula única e altamente sofisticada que deu certo. Por alguma razão, ninguém ousou copiar ou repetir a dose no mesmo nível. Acho que o sucesso no exterior esta aí, vem do fato de ter se tornado um trabalho único, que permaneceu exclusivo durante o tempo inteiro de sua existência”, defende.
Livia vê a luz no fim do túnel e ele é uma locomotiva do funk e soul brasileiro. “Eu gostaria muito de poder ver o Brasil agora usar essa chance de ter o Maria Fumaça nas mãos, de ouvir esse trabalho como o mundo vem ouvindo há tanto tempo. Será maravilhoso.” Já está sendo.
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