O escritor Umberto Eco vive com a mulher num apartamento duplo no 2º e 3º andares de um prédio antigo, de frente para o Palácio Sforzesco, o mais vistoso ponto turístico de Milão, na Itália. É como se Alice Munro morasse defronte à Canadian Tower em Toronto, Haruki Murakami instalasse sua casa no sopé do Monte Fuji ou então Paulo Coelho mantivesse uma mansão na Urca, à sombra do Pão de Açúcar. “Acordo todo dia com a Renascença”, diz Eco.
A enorme fortificação diante de suas janelas foi inaugurada pelo duque Francisco Sforza no século XV e está sempre lotada de turistas. O castelo deve também abrir seus portões pela manhã com uma sensação parecida. Diante dele, vive o intelectual e romancista mais famoso da Itália.
Um dos andares da casa de Eco é dedicado ao escritório e à biblioteca. São quatro salas repletas de livros, divididas por temas e por autores em ordem alfabética. A sala em que trabalha é pequena. Abriga aquilo que ele chama de “ala das ciências banidas”, como ocultismo, sociedades secretas, mesmerismo, esoterismo e bruxaria.
Ali estão as fontes principais dos romances de sucesso de Eco: O nome da rosa (1980), O pêndulo de Foucault (1988), A ilha do dia anterior (1994), Baudolino (2000), A misteriosa chama da rainha Loana (2004) e O cemitério de Praga (editora Record, 480 páginas, R$ 49,90). Publicado em 2010 e lançado com sucesso no Brasil em 2011, o livro provocou polêmica por tratar de forma humorística um assunto sério: o surgimento do antissemitismo na Europa. Por motivos diversos, protestaram a Igreja Católica e o rabino de Roma. A primeira porque Eco satirizava os jesuítas (“são maçons de saia”, diz o personagem principal, o odioso tabelião Simone Simonini).
De muito bom humor, ele conversou com ÉPOCA durante duas horas sobre a idade, o gênero que inventou – o suspense erudito –, a decadência europeia e seu assunto mais constante nos últimos anos: a morte do livro. Ele disse ainda que “informação demais faz mal” ao analisar a internet como ferramenta de comunicação.
É difícil de acreditar, mas aquele que era visto como o maior inimigo da leitura pelo computador está revendo suas posições. Ele diz agora que está até gostando de ler livros pelo iPad, que comprou durante sua última turnê pelos Estados Unidos, em dezembro.
ÉPOCA – Apesar da evolução, o senhor vê a internet como um perigo para o saber?
Eco – A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia.
A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como exemplo o ditador e líder romano Júlio César e como os historiadores antigos trataram dele.
Todos dizem que foi importante porque alterou a história. Os cronistas romanos só citam sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de César. Nada se sabe sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à educação ou seja lá o que for. Hoje, na internet, Júlio César e Calpúrnia têm a mesma importância. Ora, isso não é conhecimento.
ÉPOCA – Mas o conhecimento está se tornando mais acessível com a internet. O senhor não acha que o acesso a bancos de dados de instituições confiáveis altera nossa noção de cultura?
Eco – Sim, é verdade. Se você sabe quais os sites e bancos de dados são confiáveis, você tem acesso ao conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos ricos de conhecimento. Podemos aproveitar melhor a internet do que aquele pobre senhor que está comprando salame na feira aí em frente.
Nesse sentido, a televisão era útil para o ignorante, porque selecionava a informação de que ele poderia precisar, ainda que informação idiota. A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento.
A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes.
ÉPOCA – Há uma solução para o excesso de informação?
Eco – Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar.