“Não se tratava de meramente relembrar o passado, mas de produzir uma peça que fosse forte como expressão atual e estivesse à altura do nosso histórico”, diz Caetano Veloso em determinado momento do release do novo disco de Gal Costa. Recanto, que chega às lojas nesta terça-feira (6), todo composto por Caetano e interpretado pela conterrânea, é, por todas suas onze faixas, um enorme exercício de tradição e modernidade caminhando lado a lado.
O projeto surgiu quando Caetano viu um show de Gal em Lisboa que o deixou estupefato. “Eu vinha sonhando com ideias para um disco de música eletrônica, e tudo que pensava eu pensava na voz da Gal”, conta o compositor durante uma entrevista em um hotel de São Paulo. “Quando vi o show, tive certeza que queria fazer um disco com aquela voz”, completa.
Ao definir o projeto, Caetano chamou seu filho, Moreno, para produzir o disco e escolheu o produtor Kassin para ficar encarregado das bases eletrônicas. Se o processo é comum para o cantor – Caetano tem trabalhado com músicos da geração de Moreno desde 2006, em seu disco Cê – para Gal a experiência é nova. “Só conheci o Domenico quando estávamos ensaiando para a apresentação no Programa do Jô”, revela a cantora. “Ainda não conheci o Kassin pessoalmente.”
A tecnologia exerceu papel fundamental em Recanto, feito numa espécie de ponte-áerea digital Salvador-Rio de Janeiro. Caetano e Kassin trabalhavam nas bases na capital carioca e enviavam o trabalho para Gal e Moreno terminarem em Salvador, onde os dois moram. “Eu ia aprendendo as músicas com a voz do Caetano. Eu e Moreno achávamos meu tom, gravávamos e devolvíamos”, diz Gal.
Foi dessa forma que surgiu a união de contrastes que marca o disco: a voz doce e cristalina de Gal com uma cama eletrônica. “Eu queria que as canções não fossem recatadas, não evitassem ideias difíceis nem sons desagradáveis”, explica Caetano. “Sabia que a coolness da voz da Gal poderia conviver com segurança e autoridade em meio a tudo isso”, completa.
Caetano e Gal assumem, sem medo, que o disco é um projeto ousado. “No eletrônico você pode ser agressivo sem precisar gritar no palco”, diz Caetano. Entre barulhos digitais e até mesmo um funk – Miami Maculelê -, os dois, no entanto, se derretem por Tudo Dói, faixa que traz, em seu DNA, traços incontestes de João Gilberto. “Ela sintetiza o disco. Tem estranheza, irreverência e ao mesmo tempo beleza. Não sei explicar”, diz Gal.
Recanto traz estampado na capa o rosto de Gal, mas é impossível ouvir o disco sem tomá-lo como uma obra de Caetano. Foi ele o mentor da ideia, o compositor de todas as canções, além de ter acompanhado todo o processo de arranjos e produção. Mesmo assim, ele não vê sentido em assinar o disco. “Basta que esteja creditado ‘todas as canções compostas por Caetano Veloso'”, diz. “Não é o caso do Domingo, que eu cantava e dividia as faixas com ela.”
A parceria vai se estender para os palcos. Caetano dirige a turnê, mas ainda não há decisões sobre como a sonoridade de Recanto será transposta ao vivo. “Queremos que seja um trio, mas não sei como vai funcionar. Caetano pensou em alguns momentos com violão”, diz Gal. Sendo uma extensão do disco, é natural que alguns clássicos da carreira da cantora ganhem novos arranjos contemporâneos. Caetano faz segredo, mas dá algumas dicas. “Acho que Vapor Barato merece um bom tratamento neste show.”
A contracapa de Recanto traz uma foto de Gal e Caetano no Festival da Ilha de Wight, na Inglaterra, nos tempos de exílio do cantor. Enviada por um amigo norte-americano durante o processo, a imagem é destacada pelos dois como uma espécie de conexão do trabalho atual com o Tropicalismo. “A ousadia da produção eletrônica tem a ver com nosso DNA”, comenta Caetano. Faz sentido. Mesmo depois de 40 anos, os dois velhos amigos e parceiros da Bahia se uniram para criar uma obra relevante e instigante dentro de seu tempo.