Alguns meses atrás, fui procurado por um cara chamado Tomás Chiaverini. Ele se apresentou como jornalista, disse que estava preparando um livro sobre raves e que queria me entrevistar. Minha reação inicial foi de ceticismo. O próprio Tomás admitia que não sabia nada de música eletrônica. Acontece que o Tomás é um bom jornalista. E o bom jornalista não precisa ter conhecimento prévio do assunto que vai abordar. O bom jornalista mergulha naquele assunto, pesquisa, fuça, entrevista, convive com os personagens e, a partir daí, extrai sua história. O livro anterior do Tomás, por exemplo, Cama de Cimento, relata o cotidiano dos sem-teto. Para contar essa história, Tomás virou morador de rua de verdade.Já em sua pesquisa sobre as raves, ele tomou ecstasy, viajou com a galera de ônibus para a Bahia, frequentou um monte de festas e conversou com dezenas de pessoas desse meio. O resultado é o livro Festa Infinita – O Entorpecente Mundo das Raves, lançado agora pela Ediouro. Ainda não li, mas é certo que vem polêmica por aí. A galope.O Tomás concorda. Falamos sobre este e outros assuntos na entrevista a seguir:Por que escrever um livro sobre as raves? O que lhe atraiu nesse tema?
Tive a idéia de escrever o livro quando estava de férias na Bahia e conheci um pessoal que estava indo para o Universo Paralello. Quando eles começaram a falar sobre festas que duram semanas, que atraem dezenas de milhares de pessoas, que são organizadas em praias isoladas, desertos, galpões, que têm toda essa cultura meio neo-hippie por trás, já fiquei pra lá de interessado no assunto.
Depois de pesquisar um pouco, as questões mais antropológicas também me fascinaram: até onde vai o impacto de um festival gigantesco numa cidadezinha baiana, como convivem dez mil pessoas acampadas durante dias num mesmo lugar isolado, como o transe pela música age na nossa cabeça, e assim por diante.
Qual é a balada que costumava frequentar antes? Que tipo de música gostava?
Sou bem eclético no gosto musical, ouço de tudo. Mas o que gosto mais é MPB e rock, com carinho especial pelos clássicos. Quanto às baladas, sempre dei preferência pros botecos, com abundância de amigos e cerveja.
Você me contou que não sabia nada sobre o assunto antes de começar a pesquisa. Mas certamente tinha algumas ideias pré-concebidas sobre esse universo. Quais eram? Quais provaram estar certas e quais erradas?
Como não podia deixar de ser, eu tinha um pouco aquela visão de templo da perdição, que a imprensa geralmente passa sobre as raves. E, convenhamos, há algumas festas que não estão tão longe desse estereótipo. Mas eu imaginava as raves como algo mais soturno, algo mais próximo do punk do que do hippie, visão que hoje me parece incorreta.
JORNALISMO HUMANO
Quais foram as maiores dificuldades que teve durante a pesquisa e elaboração do livro?
Eu faço um jornalismo que é bem diferente do que encontramos nos jornais e revistas tradicionais. É um jornalismo humano, muito voltado pra histórias de vida, pra personagens. E para que esses personagens ganhem profundidade, é preciso uma aproximação muito grande entre o repórter e o entrevistado, o que é muito difícil.
Primeiro porque sou um pouco tímido, então tenho de me esforçar pra me aproximar de desconhecidos. Segundo porque quando essa aproximação acontece, ela quase sempre traz junto uma relação de amizade o que faz com que seja muito difícil manter um mínimo de imparcialidade.
Destaque alguns personagens interessantes que encontrou em sua pesquisa.
Putz, são vários. Mas tem a história do André Meyer, que antes de ser pioneiro das raves e dos piercings por aqui acompanhou o surgimento das festas em Londres e em Goa. Tem o perfil do Alok e toda a tensão que ele enfrenta nas semanas que antecedem o Universo Paralello. Ah, e tem o pessoal do Fuck For Forest, um grupo de gringos que faz shows de sexo, mantém um site com suas performances, e reverte todo o dinheiro que ganha para causas ambientais.
Que DJs e núcleos de festa entrevistou?
Também foram vários. Mas os DJs que estão na ativa e que aparecem bastante no livro são o Rica Amaral, o Gabriel Serrasqueiro (do Wrecked Machines), o Du Serena, o Swarup e o Edu (da Respect). As festas mais retratadas são a Respect, a Xxxperience, a Tribe, o Trancendence e o Universo Paralello. Além disso, têm os DJs pioneiros: André Meyer, Dmitri Rugiero (da Avonts), tem o pessoal da Fusion, têm um pouco das suas festas, que começaram a juntar o mundo eletrônico urbano com as raves que vinham de Trancoso, enfim, muita coisa.
DESCONFIANÇA
Você encontrou muita desconfiança de pessoas nessa cena, justamente por ser de fora?
Um pouco. Mas tem muita gente esclarecida também, que entende que o fato de eu ser de fora e estar propondo um trabalho sério, é um ponto a favor. Quer dizer, como um outsider, eu tenho muito mais liberdade pra buscar o máximo de imparcialidade.
No final, qual é sua conclusão sobre o modo como a mídia ou a opinião “mainstream” vêem as raves. É uma visão injusta? Por quê?
Eu acho que sim, porque as raves geralmente ganham espaço na grande imprensa quando alguém morre de overdose, despenca do penhasco ou é esmagado por uma caixa de som. Por outro lado, é assim que a imprensa funciona, à base de más notícias. E funciona assim, porque é isso que vende jornal, os telejornais têm mais audiência quando mostram catástrofes. Então é injusto? É, mas faz parte do jogo, da natureza humana…
Seu release diz que o livro quer mostrar que o mundo das raves vai muito além das drogas e que este seria praticamente o único aspecto abordado pelos jornais. Ao mesmo tempo, o subtitulo parece ressaltar justamente esse aspecto (“o mundo entorpecente das raves”). Não há uma certa contradição aí?
Não creio que haja contradição. Porque o livro vai realmente além da questão das drogas, mas isso não quer dizer que esse lado não seja retratado. Eu acredito que as drogas, principalmente o ecstasy e o LSD estejam intimamente ligadas com a história da música eletrônica.O ecstasy, que apareceu junto com o house e o techno, foi um dos principais responsáveis pela popularização desses gêneros. E não tenho medo de afirmar que atualmente a maior parte dos freqüentadores de rave usa algum tipo de droga ilícita. Agora, o que me proponho no livro, é a fazer um retrato menos maniqueísta desse aspecto também, é mostrar as mais diversas facetas da questão. Ainda não tive a oportunidade de ler o livro. Estou curioso em saber o nível de polêmica que vai levantar, dentro e fora da cena. Você acha que ele tem potencial polêmico? Eu acho que o Festa Infinita vai causar polêmica dentro e fora da cena, e talvez a questão das drogas seja a mais crítica. Como disse, eu faço um retrato multifacetado da questão. Eu tomo um ecstasy, vou para a pista de dança e conto cada uma das sensações maravilhosas que ele causa. Mas também mostro o que acontece no dia seguinte, detalho os efeitos colaterais no organismo, abordo a questão da violência aliada ao tráfico de drogas, e explicito as ações descabidas da polícia. Então, acho que parte dos aficionados por esse mundo vai me chamar de reacionário, enquanto os reacionários vão me acusar de fazer apologia. Mas, no fim, eu espero que o livro seja maior do que essas polêmicas.
DROGA DEMAIS
Você acha o consumo de drogas nessa cena excessivo?
Acho que sim. Tem muito adolescente que vai a festas apenas pra experimentar uma balinha pela primeira vez. Essa situação se torna mais crítica quando há milhares de pessoas juntas, tomando substâncias que não passaram por nenhum controle de qualidade e podem causar as mais diversas reações no organismo. Mas aí, novamente não podemos colocar a culpa nas raves. Temos o carnaval, as micaretas, os bailes funks, os shows de rock e aposto que nesses eventos o consumo de drogas também é exagerado. As drogas são um problema da sociedade como um todo e não é proibindo as raves que vamos acabar com ele.
Quais as coisas que você mais gostou nesse universo?
Em festivais como o Trancendence e o Universo Paralello, há um clima de paz e amor que me surpreendeu bastante. Estar numa praia paradisíaca, cercado de pessoas bonitas, com performances surgindo de todo o canto, música, e com uma sensação de total liberdade, é algo realmente fascinante.
Agora que acabou a pesquisa e o livro ficou pronto, você pegou gosto pela brincadeira e pretende continuar a frequentar festas eletrônicas?
Eu gostaria de passar outro réveillon no Universo Paralello. Dessa vez sem ter que anotar nada.
Em dado momento, você me pediu ajuda para tentar diferenciar os estilos de música eletrônica. E agora, já sente que sabe a diferença entre um minimal, um tech-house, um electro?
Agora já me arrisco na catalogação. Mas ainda estou longe de ser um especialista em música eletrônica.
Fonte: Camilo Rocha – Putz Putz