Com a palavra… Bruno Duailibe
Hot Spot volta com mais uma crônica assinada por Bruno Duailibe, que, pelo arrojo e frescor de sua escrita e pela maneira lúcida como conduz seus raciocínio e ideias, tem tudo a ver com o blog. Sem mais delongas, vamos logo ao texto dele, ilustrado aqui, como sempre, pela arte de Salomão Jr.
Entre amigos ou desconhecidos, os mal-entendidos causam sempre aquele mal-estar e o desejo de desaparecer ou de poder voltar no tempo no momento seguinte em que ocorreram. Depois de alguns minutos ou de alguns dias, você poderá rir daquele momento insólito. Não importa, por mais cuidado e cautela que você tenha, os mal-entendidos ocorrerão.
Não há tanto mal nisso, dependendo do contexto em que aconteceram e do tempo que se levou para perceber o engano; ou se, na pior das hipóteses, não puder ser mais desfeito. Em que pese esses transtornos, se digo que não há tanto mal é porque o campo natural dos mal-entendidos é a sociedade, é a vida, é a vida em sociedade.
E o motivo – também natural – é a linguagem, essa fonte de mal-entendidos, como ensina a sábia raposa da ficção criada por Saint-Exupéry, em sua obra “O Pequeno Príncipe”. E, como a linguagem envolve interações, é lógico que a intersubjetividade influirá muito na interpretação do que foi dito ou escrito por quem ouve ou lê.
Nas interações do dia-a-dia, eles são mais do que corriqueiros. Eu falo uma coisa, o meu interlocutor, distraído, já pensando num compromisso a seguir, entende outra completamente diferente. Também são comuns e dignos de nota aqueles momentos em que você se dá conta de que não percebeu nada de coisa alguma. A cena clássica é aquela em que você abre o jornal e encontra uma crítica de um especialista justamente sobre o livro que acabara de ler. No artigo, contudo, você encontra explicações que contrariam todos os seus entendimentos sobre o enredo, os personagens e a moral da história. E lá vai ter que ler o livro de novo para ver se bem compreende, dessa vez.
Aquilo que mais me deixou boquiaberto, nessa seara dos mal-entendidos, diz respeito às típicas brincadeiras de infância. Falei e ouvi inúmeras vezes: “batatinha quando nasce se esparrama pelo chão…”. Recentemente, contudo, já pensando no meu filho que nascerá no início do ano que vem, constatei que a quadrinha é, na verdade, “batatinha quando nasce espalha rama pelo chão…”.
Do mesmo gênero é o mal-entendido que já cansei de repetir, mesmo depois de adulto: “hoje é domingo, pé de cachimbo”. Se você, como eu, pensava que era assim, saiba que o dia de descanso, domingo, “pede cachimbo”. A semelhança dos fonemas sem dúvida, provocou o equívoco.
Se a comunicação se trava em língua estrangeira, temos campo fértil para uma centena de situações que podem ser reputadas desde esdrúxulas a cômicas, passando pelas vexatórias. De la lengua hermana, soube que uma conhecida de uma conhecida minha, visitando Madrid, pediu em portunhol um “cartón” do hotel em que se hospedara e depois de uma certa hesitação da recepcionista recebeu “una tarjeta”.
Um mal-entendido parece ter sido a origem da denominação do animal que é símbolo da Austrália, o canguru, que em inglês é denominado “kangaroo”. Reza a lenda que, depois que marinheiros levaram a bordo um filhote de um animal muito parecido com um cão e mostraram ao tenente James Cook, alguns dos militares foram por ele enviados ao solo para questionar aos nativos a denominação do exótico animal e os nativos, que utilizavam o idioma aborígene “Guguyimidjir”, responderam a eles “ Gangurru”. Tempos depois, descobriu-se que a expressão aborígene utilizada na ocasião significa “eu não entendo” ou “eu não sei”.
Com exemplos iguais ou semelhantes a esse mal-entendido, constrói-se a História. E ela é mesmo cheia de mal-entendidos. Num artigo também sobre este tema, Luís Fernando Veríssimo nos adverte que a experimentada liberdade dos anos vinte foi a mesma que gerou o totalitarismo. E, depois de uma análise dos mal-entendidos históricos dos últimos cem anos, parece ter chegado à mesma conclusão a que chegou o parisense Baudelaire: “O mundo caminha através do mal-entendido”.
Para Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa), em seu Livro do Desassossego, criamos mal-entendidos porque o homem procura dar ideias sobre o desconhecido a partir do que lhe é conhecido. E desses mal-entendidos provêm as nossas crenças e esperanças, enfim, a nossa própria realidade.
Na seara política, então, haveria um campo amplo para os mal-entendidos, não fosse tudo “uma questão de hermenêutica”.
De efeito, às vezes acho que essa história de que para bom entendedor meia palavra basta não é sempre verdadeira. Vez por outra são necessárias mais de meia dúzia de palavras para se bem entender. Ou, mesmo, para não ser compreendido de maneira alguma.
Bruno Duailibe
Advogado. Graduado pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-Graduado em Direito Processual Civil no ICAT-UNIDF / email: [email protected]