Nosso cronista convidado volta com um de seus textos, desta vez, com sua usual forma descontraída, leve e inteligente, discorrendo sobre o prazer de comer. Sem mais delongas, vamos à sua crônica.Ilustração: Salomão Jr.
Banquete para os cinco sentidos
Eu não escondo de ninguém que o meu apetite sempre foi visual. Se olho uma comida passando na minha frente dificilmente resisto. Não sei se consigo explicar sem deixar escapar a infinidade de sensações que envolvem esse processo de deglutição com os olhos. É como se cada uma das cores e formas da comida me fizessem imaginar o seu sabor e sentir a sua textura.
Tanto mais que ingeri-las é essa sedução que me apraz ao me alimentar. Assim, porque como primeiro com os olhos, a boa aparência do prato é fundamental. É claro que já me enganei. Aquela iguaria que se mostrava tão saborosa, no fim das contas, nem era tão assim quanto os meus olhos me fizeram acreditar.
O contrário também já aconteceu. Maniçoba, também conhecida como feijoada paraense, é o exemplo que me veio à mente: a sua aparência bizarra afugentou-me ao primeiro encontro, mas seu sabor me conquistou.
Tenho um prazer quase que carnal em comer, mas também me satisfaço demais em ver as pessoas comendo. Acho que isso é bíblico. Não sei. Mas, sei que a mesa é um lugar sagrado. Também pode ser espaço para o pecado como a gula. Ou para outros piores.
Não foi uma, nem duas vezes que me sentei e vendo alguém comer desejei aquele último pedaço que, antes de ir parar na boca desse alguém, caiu foi no chão. Uma pena: o pedacinho não foi meu, nem de ninguém. Aliás, preciso dizer que por conta de uma antiga mania, que consiste em provar a comida de quem está ao meu lado, já fui chamado inúmeras vezes de “rei da bitoca”.
Todas essas divagações sobre meu apetite visual quase me fizeram esquecer o que queria mesmo contar. É que, ao me sentar para escrever este artigo, dei por conta que o meu apetite é também sonoro. Foi algo mais ou menos casual: eu estava em frente ao computador no meu quarto, pensando no que escrever, quando então passei a me concentrar foi no barulho dos talheres de Dona Bira, minha eterna aliada, que na cozinha está a comer algo saboroso, pois tudo o que ela faz é bom.
Sei que a regra de etiqueta determina que talheres não foram feitos para fazer barulho durante as refeições. Isso é básico, inclusive. Entretanto, constatei, que o barulho, mesmo que de longe, de um talher tocando noutro ou de um talher se atritando com o prato é bastante prazeroso e fomenta o apetite. Será que alguém tem a mesma opinião?
Caso não, é possível que algum som típico da cozinha traga-lhe a expectativa de que em pouco tempo se provará o sabor de um prato que aprecia. É o ovo que se quebra e que logo se começa a bater para transformá-lo numa apetitosa omelete. Tem também aquele ruído de apetrechos de cozinha que podem trazer recordações de algum manjar perdido no tempo.
E pode até ser falta de educação, mas não tem coisa melhor que poder, com a ajuda das mãos, roer os ossos da asa da galinha. Igual a esse deleite é aquele de poder juntar o resto do molho com a ajuda de um pedaço de pão massa grossa e levá-lo à boca. Com esse ato quase se pode voltar à infância, quando não se tinha ainda muito o traquejo para usar o garfo e a faca ou mesmo a um passado ainda mais distante…
Como lembra Laurentino Gomes, no livro “1808”, na época em que D. João VI fugiu das tropas de Napoleão Bonaparte para o Brasil, nossa gente, em geral, não sabia o que era usar talheres à mesa, e assim as refeições eram feitas com as mãos.
De outra parte, bom mesmo é poder levar uma comida cheirosa à boca. O odor de um café fumegante é coisa que me tira do sério. Se junto do café for possível sentir também aquele que é proporcionado por um pão quente a perdição, então, é total. Com essa dupla de perfume irresistível, já se tem uma infinita desculpa para postergar qualquer regime.
Agora, para meu paladar, comida saborosa é aquela que encanta pelo aroma e que, quando se encontra com sua língua, você sente vontade de decifrar cada um dos temperos que a condimentaram. Aquele cheiro ardido do alho e da cebola, o aroma fresco de três ou quarto folhas de manjericão ou mesmo tomilho, o azeite de alguma oliveira e tomates, muitos tomates.
Só de imaginar o encontro de uma comida com a língua vieram a minha cabeça os ingredientes que imagino compor esse molho. É que toda vez que tenho a alegria de ingeri-lo tento decifrar quais os segredos alquímicos que a minha estimada sogra utiliza para o molho de tomate, que faz do macarrão por ela preparado, indiscutivelmente, se tornar o meu prato predileto.
Talvez, quem leia este artigo acabe por resumir que estou a falar somente de nervos, sinapses e memórias. Trocando em miúdos, pode até ser isso apenas. Mas em tempos que muitas refeições são feitas assistindo-se televisão, alimentar-se passa a ser simplesmente um ato de jogar a comida para dentro do organismo.
Hoje, que é domingo, você não deve ter a justificativa do compromisso inadiável que tanto lhe retira o prazer de almoçar com a sua família. Assim, aproveite este dia para oferecer um banquete aos seus cinco sentidos: ouça os leves sons dos talheres, aprecie as cores, os aromas, a textura, o sabor da comida e, principalmente, alimente a sua alma.
Bruno Duailibe
Advogado. Graduado pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-Graduado em Direito Processual Civil no ICAT-UNIDF / [email protected]