Hot Spot volta a trazer uma das crônicas publicadas por Bruno Duailibe na coluna dominical “Opinião”, do jornal “O Estado”. A do último domingo, 17, diga-se de passagem, está inspiradíssima. Sem mais delongas, vamos ao texto dele.O Butão da Felicidade
Não faz muito tempo, li um artigo de autoria de Pablo Guimón, publicado na edição de 29.11.2009 do jornal espanhol El País, sobre o Butão, um pequeno país localizado no Himalaia. Escrito depois de uma visita a essa democracia monárquica recentemente estabelecida pelo próprio rei e não através da força do seu povo, o citado ensaio tratava do novo índice que ali foi criado e introduzido em 2008 para medir o bem-estar de seus cidadãos: a Felicidade Interna Bruta (FIB).
A concepção da FIB, entretanto, é muito anterior ao efetivo nascimento do indicador. Guimón mencionava em seu relato que o índice teve como propulsor o discurso de coroação de seu quarto rei, Jigme Singye Wangchuck, que sustentou, naquela ocasião (1974), que “a felicidade interna bruta é muito mais importante do que o produto interno bruto”.
Embora não tenha sido referido na reportagem, esta frase já tinha sido utilizada pelo monarca numa entrevista concedida dois anos antes. E o que estava por trás dela era uma crítica enviesada e budista às políticas que priorizavam – e ainda priorizam – o crescimento do mercado, medido pelo Produto Interno Bruto (PIB), em detrimento de aspectos não econômicos que conduzem a uma maior satisfação social.
Trocando em miúdos, pode-se afirmar que o novo índice carrega em seu bojo a ideia de que “dinheiro não traz felicidade”, indo além do que é frequentemente validado pelo senso comum e, certamente, encerra outros detalhes de relevância para a compreensão dos fundamentos hedônicos e efeitos alcançados pelo país.
Depois de algumas pesquisas, pude verificar que desde 1999, o Centro para Estudos do Butão, com o posterior apoio financeiro do Programa para Desenvolvimento Econômico das Nações Unidas, trabalhou para a construção dos elementos que converteriam o conceito da FIB num indicador que mediria com estatísticas a felicidade quantitativa e qualitativa dos butaneses.
De modo geral, é com fundamento na forma que seus cidadãos vislumbravam dimensões holísticas, tais como a satisfação com a vida, o uso do tempo, a vitalidade da comunidade, que se embasou o índice. E o que se propõe é que essas perspectivas subjetivas dos cidadãos sirvam de instrumento para a formulação e implementação das políticas governamentais. Tudo para atingir-se o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e o bem-estar emocional e espiritual. Ou seja, a FIB teve o condão de concretizar o discurso do monarca que passou a ecoar mundialmente.
Em parte, isso se deve aos efeitos obtidos em pesquisas de âmbito mundial, antes mesmo da criação do indicador, em 2008. E aí está o surpreendente, parece-me. É que, apesar de ser uma das menores economias do mundo, o Butão figurou entre os dez países mais felizes no “Mapa-Múndi da Felicidade” de 2006. E, no ano seguinte, foi a segunda economia do planeta que mais rápido se desenvolveu.
Não tenho dúvida de que esse índice de satisfação social (FIB) pode fazer rir a maioria dos economistas e dirigentes mundiais que direcionam as suas políticas para o desenvolvimento econômico dos respectivos mercados internos. E tudo se torna mais cômico, ao cogitar-se a “exportação” e implantação de tais vias para medir e produzir a felicidade nos países de cultura ocidental com economia de mercado.
Todavia, meios, fins e resultados do Butão revelaram os limites de indicadores econômicos e das políticas que se pautam normalmente no PIB, criando um clima de espanto. E causou um incômodo a mais: pairou no ar que os dados macroeconômicos capazes de evidenciar o enriquecimento (ou empobrecimento) de um país poderiam não refletir o progresso social e, em última análise, a felicidade de uma nação.
Esse desassossego vai ao encontro de diversos estudos sobre os (supostos) nefastos efeitos das economias de mercado. E pareceu incomodar também dirigentes de nações ocidentais e desenvolvidas. Tanto assim é que o Canadá já desenvolveu o seu índice de bem-estar e o Reino Unido, desde 2006, vem sustentando a sua implantação.
A França também segue esses passos. Nesse sentido, em 2008, Nicolas Sarkozy criou a Comissão Internacional para a Medição do Desempenho Econômico e o Progresso Social. Ancorada por três economistas laureados pelo Nobel de Economia e composta por reconhecidos acadêmicos e membros de organizações internacionais, essa comissão tinha como propósito investigar as limitações dos indicadores estatísticos (econômicos) em relação ao progresso e seus efeitos sociais.
A conclusão, divulgada em 2009 através de um extenso relatório, foi a de que o PIB pode ser utilizado de forma equivocada, se servir, por exemplo, para medir o bem-estar social. A dedução que se segue a essa é óbvia: as políticas públicas formuladas com base no indicador macroeconômico com o intuito de gerar maior satisfação social podem não ser capazes de criar o efeito pretendido, por uma falha constatável desde a formulação da política governamental.
Ainda que o estudo deva ser analisado com razoabilidade e tendo em vista as críticas políticas e ideológicas que se fazem à iniciativa do presidente francês, fica registrado o ligeiro descompasso entre progresso econômico e os anseios da população, tornando-se factível, mais uma vez, a fragilidade dos indicadores que subsidiam normalmente as ações governamentais.
À guisa de outra forma de repensar o equilíbrio entre progresso econômico e social, a FIB tem ganhado força em todo mundo. E com satisfação informo aos meus leitores que o Brasil não está alheio às discussões que ela enseja. Prova disso é que em 2009 foi realizada, em Foz do Iguaçu, a 5ª Conferência Internacional sobre Felicidade Interna Bruta.
Embora não seja esse o principal fundamento, nem tenha como fim políticas lastreadas na FIB, a Proposta de Emenda Constitucional n. 19/2010 parece ser uma consequência desse repensar e um incentivo para que uma vida mais feliz seja alcançada pelo povo brasileiro. Para quem a desconhece, essa proposta que tramita no Senado Federal do Brasil tem o objetivo de consignar expressamente na Constituição da República a felicidade como um direito social. Chacotas e críticas à parte, penso que a medida não deixará ninguém esquecer que esse deve ser o fundamento da ação estatal.
Ademais, em tempos nos quais somos bombardeados com fórmulas de felicidade a todo custo, reenergiza-se a ideia de que “não se pode ser feliz sozinho”. E, mesmo que estejamos pouco acostumados a essa visão mais plural de felicidade, não se pode deixar de concatená-la ao modelo estatal do Bem-Estar Social (Welfare State) e aos direitos fundamentais de primeira, segunda, terceira e quarta geração que sustentam as sociedades democráticas.
Tal fato não ocorre exclusivamente em razão desses elementos da estrutura estatal e governamental hoje em vigor. Antes e acima de toda a visão sistematizada, politizada e econômica da vida social, parece-me que o ponto que une todos os membros da casa da humanidade é a felicidade. Assim, para mim, proclamar que a FIB é balela e que é impossível quantificar e qualificar a felicidade não pode ser justificativa e sustentáculo para deixar de repensar o que pode ser feito para que gozemos de uma vida com maior satisfação social.
É, por isso, que espero que o “botão” da felicidade, confeccionado pelo Butão, seja caseado nessa vestimenta que desejamos costurar para uma vida mais feliz, hoje, amanhã e sempre.
Bruno Duailibe / Advogado. Graduado pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-Graduado em Direito Processual Civil no ICAT-UNIDF / e-mail: [email protected]
*Arte: Salomão Jr.