Hot Spot volta a reproduzir uma crônica do advogado Bruno Duailibe, publicada, quinzenalmente, na coluna Opinião do jornal “O Estado”, de domingo.[Arte: Gustavo Santana]
(Des)ordem e progresso
Embora inúmeros países tenham um lema que conduz a atuação do Estado, penso que o Brasil é um dos poucos que estampou em sua bandeira o mote que conduziria a nossa nação: ordem e progresso.
A bem da verdade, para compreender a escolha dessas duas palavras, um ponto de natureza histórica precisa ser esclarecido. Ele se refere ao fato de que a aristocracia que levou a cabo o golpe de estado que liquidou a monarquia em 1889 foi fundamentalmente influenciada pelo movimento intelectual idealizado por Augusto Comte.
Para esse filósofo, todo o conhecimento deveria ser baseado na experiência positiva, afastando-se da investigação científica qualquer influência de idealizações ou da metafísica. Ainda de acordo com o seu entendimento, o progresso e a transformação da humanidade dependem dos avanços científicos.
Na América, a sua filosofia ganhou contornos políticos e, no Brasil, influenciou os ideais da república que fora proclamada, bem como a sua organização formal. Essa influência ficou registrada no estabelecimento de um Estado laico e nas palavras “Ordem e progresso”, inscritas na bandeira nacional, que abreviam a máxima política do positivismo: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”.
Em meio à análise de todos esses elementos históricos e filosóficos é curioso dar conta de que ordem traz em seu significado a ideia de estabilidade, enquanto que progresso está ligado à ideia de dinâmica. Também é contraditório observar que o próprio avanço científico que determina o progresso da humanidade, segundo Comte, é obtido através do incessante movimento do pensamento humano.
Não sei se o(a) leitor(a) concordará comigo, mas não haveria, assim, uma incompatibilidade entre a finalidade (progresso) e o seu pressuposto (ordem)? Não seria a desordem também necessária para promover o propósito do lema nacional?
Permito-me aqui divagar sobre alguns elementos que podem alimentar uma discussão que tenha por objetivo alcançar a resposta desses questionamentos.
De efeito, Edgard Morin – um filósofo francês que procura em seus estudos compreender a complexidade do mundo pós-moderno – entende que o universo é um cocktail de ordem e desordem. Para ele, a presença da desordem no universo revela-se em todos os níveis, seja ele microfísico, cosmofísico, histórico ou humano.
No plano microfísico o autor lembra que a termodinâmica introduziu a desordem molecular no fenômeno chamado calor. Nosso universo também foi originado de uma explosão, que deflagrou uma enorme agitação molecular, o que demonstra que o plano cosmofísico nada seria sem a desordem.
A história, sem dúvidas, nos dá exemplos contínuos de que as relações sociais não se reduzem a processos deterministas, mas que é feita também de bifurcações, de acaso, de crises.
A II Guerra Mundial é um exemplo que cai como uma luva encomendada. Foi oriunda de uma crise política, econômica e ideológica; deu origem a eventos nefastos para toda a humanidade. Todavia, propiciou a cultura pela paz e o nascimento dos direitos humanos.
A história brasileira também nos permite constatar a razoabilidade do raciocínio de Morin. Desde 1889, o Brasil foi marcado por ciclos de crises e progressos. Nesse sentido, muitas ordens (políticas e econômicas) foram estabelecidas para promover o progresso nacional. A desordem gerada pela crise não deu origem ao caos, como se poderia pressupor, mas foi um passo para que uma ordem, em tese melhor, pudesse surgir.
Em nossas vidas, é comum percebemos que tudo está “de pernas para o ar”. Nesses momentos, costuma-se pensar que o fio da meada não será encontrado, mas, passado algum tempo, somos capazes de aceitar que eles foram essenciais para que pudéssemos ultrapassar os limites e ter novos horizontes; progredir, enfim. Como se vê, Morin tem toda razão: o nível humano é essencialmente marcado pela desordem.
Nesse passo, pode-se perceber que a desordem não é constante, nem a ordem é perene. Embora sejam ideias paradoxais, complementam-se quando se tem por fim um ideal de progresso. A desordem sufraga o início de outra ordem, que se estabelecerá até que advenha nova desordem, formando-se um verdadeiro círculo virtuoso.
Com essa reflexão não defendo que, para haver progresso, a desordem deve imperar em detrimento da ordem. Sem ordem o universo seria insensato, impossível; e a vida em sociedade seria anárquica e caótica. Ordem, portanto, é indispensável para o progresso.
Mas entendo, por outro lado, que sem desordem não existe criação, evolução e progresso. Assim, embora pareçam elementos inconciliáveis, todo processo de construção do progresso passa, sim, pela desordem.
Bruno Duailibe
Advogado. Graduado pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-Graduado em Direito Processual Civil no ICAT-UNIDF. / email: [email protected]
Abordado de forma pontual um tema que passa despercebido; que nos está escancarado e sequer nos damos conta, foi ato de coragem do escritor e, por isso, louvável. Analisar os dizeres da bandeira nacional, dando nuances conceituais de “ordem” e “desordem”, com elementos positivos para este último, é algo muito difícil, ou quase impossível, sem que haja, de plano, uma objeção geral, uma gritaria do “senso-comum”. Mais que isso, fico impressionado como o Bruno tem evoluído sua escrita para chegar a um nível bem aprimorado. Gostei muito! Do texto e da iniciativa deste blog!