A Academia Pinheirense de Letras comemorou o seu terceiro aniversário com uma larga programação na cidade de Pinheiro.
Com a participação da comunidade, foi feito um passeio noturno pelos principais pontos históricos da cidade e em cada um deles encenada uma apresentação cultural.
Destaque para o belo texto, que aproveito para reproduzir a seguir, de autoria da escritora e confrade Graça Leite, enaltecendo o velho poço do Mercado, marco da cidade de Pinheiro:
“O passado sentou-se à beira do poço do Mercado e espiou para dentro.
Viu o seu rosto envelhecido refletido no espelho das águas, fechou os olhos e sonhou…
Na nebulosidade do seu sonho, logo apareceu uma dezena de escravos cavando a terra, fazendo aquele buraco, em busca de água fresca e pura que lhes desalterassem a sede.
Suor e lágrimas escorriam pelos corpos seminus dos negros.
Talvez, quem sabe? Aquela pocinha d água, lá no fundo, que nunca seca, seja o acúmulo daquelas gotas de sofrimentos!…
Lentamente, um vulto feminino se desprende das barreiras marrons e do fundo do poço emerge a figura de uma mulher: era a Mãe D`água. Bela, branca, cabelos lisos, longos e dourados. Viu-a sentar-se no bocal do poço penteando os seus longos cabelos em noites de lua cheia. Tinha uma fisionomia serena, doce, mas era assombração, e assombração era coisa do mal, tanto é que os cachorros latiam, uivavam, gemiam, corriam pra lá e pra cá no areial das ruas e nos quintais das casas,tentando fugir dos assobios e dos açoites da dona das águas…
Depois da mãe d’água, apareceu o currupira.
Veio subindo, depressa e quando apareceu na superfície mostrou logo as suas travessuras. Moleque danado de safado! Calcanhares pra frente com os dedos dos pés todos virados para trás. Deixava rastros esquisitos pelos caminhos da mata e corria no ruma das tucunzeiras, encarrapitando-se lá no olhinho entre os espinhos e levando consigo as crianças desobedientes que se atreviam a sair de casa no pino do meio-dia.
Em seguida, apareceu de dentro do poço uma tocha de fogo e passou zunindo no rumo do campo. Era a curacanga.
Temida e respeitada por pescadores, as cabeças das velhas feiticeiras libertavam-se dos corpos que ficavam nas redes, nas noites de sexta-feira, saiam pelos campos com a sua magia incandescente, soltando faíscas, subindo e descendo, bailando ao sopro da brisa, separando-se e unindo-se em um só foco de luz que o olhar amedrontado dos pescadores fazia crescer…
Olhem! Vejam! Lá vai a curacanga riscando o céu! Vai no rumo do oiteiro de São Carlos!
A procissão de lendárias imagens, continua no sonho do passado.
É lá que ele arranca, de dentro do poço, a manguda.
Lá vem ela surgindo das águas, aparecendo nas noites escuras, com o seu chambrão branco esvoaçando, indo em desabalada carreira pelas ruas da vila de Pinheiro em busca de um amor proibido. Quem a avistava de longe, corria mais do que ela e, ofegante, chegava em casa, apagava a lamparina e jogava-se na rede com os cabelos todos em pé.
Mal a manguda desaparece, eis que o marulhar das águas do poço indica o aparecimento de mais uma lenda: é a velha feiticeira que virava porca.
Deitada no lamaçal “bucho de velha”, lá perto da Forgata, em frente à usina, ela roncava, grunhia, sapateava e pingando lama, corria atrás dos transeuntes que se aventurassem a chegar perto do seu leito lamacento.
Até a mata do Bom Viver foi resgatada pelo sonho lendário do passado e trazida para a procissão de lembranças.
Foi vista bem ali, com o seu caminho de mato com barreiras altas, estrada funda, fechada lá em cima pelas copas das palmeiras de babaçu. Da escuridão da mata ouviam-se gritos, apareciam vultos estranhos, sumiam, tornavam a aparecer,montavam na garupa dos cavaleiros, emparelhavam com o galope dos cavalos, deixando as barrigas dos animais ensangüentadas pelos fustigamentos das esporas dos seus condutores. A febre nervosa, no dia seguinte, era curada por benzições e garrafadas dos pajés.
De repente, ZAZ! Surge de dentro do poço a carroça de ossos, a meia noite, atritando correntes, chacoalhando ossos de defuntos e sai pelas ruas da cidade, interrompendo o sono dos pinheirenses que afirmam, no dia seguinte, haverem escutado o sinistro som.
A evocação destas lembranças trás o velho passado para o presente. Só então ele percebe o quando aquelas lendárias imagens estão distantes! Cento e cinqüenta e dois anos se passaram e foram guardados no fundo daquele poço! Somente ele resistiu aos impactos do mundo moderno, representando a única testemunha viva daquela época. É tudo o que restou do tempo em que o conhecimento era empírico e o povo buscava explicações para a vida simples que levava, misturando lendas, superstições e crendices, fazendo do imaginário o código das suas leis.
És tu, oh! Poço do Mercado, nosso velho amigo centenário, o depositário dos nossos mais caros tesouros!
Quantos anos tens?
Ninguém sabe. Sabemos apenas que das profundezas das tuas águas turvas, nasceram as nossas origens.
Sentado no bocal do poço do mercado, o velho passado medita.
Tem consciência de que as imagens saídas dali somente virão à tona nas páginas dos livros dos estudiosos ou na lembrança dos antigos pinheirenses.
Diante desta constatação, o velho passado espiou mais uma vez para dentro do poço e desta vez… chorou! Lágrimas de saudades foram saindo dos seus embaciados olhos cansados e pingando, pingando, uma a uma foram caindo dentro do poço misturando-se, lá no fundo com as novas águas que começaram a brotar da vertente do progresso.
Foi então que o milagre aconteceu:
Oh! Céus!
O passado e o presente se misturaram dentro do poço e as águas começaram a subir: foram subindo… subindo… e explodiram na superfície formando uma CASCATA DE LUZ!!!”
Foi uma viagem ao passado…é como se eu voltasse as origens. Uma bela viagem ao nosso tempo de criança, Onde ao cair da noite, sentavamos todos na porta de casa e os mais velhos nos contavam algumas dessas histórias. Me emocinei lendo cada uma delas. Quero parabenizar a autora e vc por ter nos dado a oportunidade de resgatar um pouco da nossa infância.
Parabéns!!!
CARO ZÉ, ESTIVE NO PASSEIO CULTURAL PROMOVIDO PELA APLAC. BONITO FOI O ARTISTA RECITAR ESSE BELO TEXTO DA NOSSA QUERIDA E IMORTAL GRACINHA, SOBRE O POÇO DO MERCADO. NOTA MIL.