No final de semana que passou, recebemos alguns amigos aqui em casa para um almoço. Discorria eu sobre as vantagens comparativas de morar em uma casa versus em um apartamento. Sou daqueles que valorizam a natureza a ter que conviver com vizinhos…
Aqui em casa, dizia eu, posso armar uma rede na varanda, ficar lendo meus livros, jornais, escutando música. Posso observar os raios de luz que sangram entre as folhas do pé de sapoti, contemplar o quintal da casa, e os pássaros que ainda teimam em me visitar e me são companhia das mais agradáveis: são rolinhas-fogo-pagou, bando de ciganinhas que aparecem para beber água na piscina, as pipiras pardas, as azuis e até mesmo as de cor vinho com bico branco são presenças permanentes para compartilharem das minhas sapotis e outras frutas que cultivo. As corujas brancas que habitam o coqueiro e as algazarras dos bandos de vin-vins fazem parte, também, do meu viveiro aberto.
Tem até os meus preferidos: dois casais de sabiás, que a cada ano no mês de maio, retornam para fazer os seus ninhos no topo das duas colunas, bem aqui dentro da varanda da casa.
Acompanhar, dia após dia, o incansável trabalho de construção dos dois novos lares é um prazer inigualável. Sou acordado diariamente pelo canto melodioso dos meus amigos sabiás.
E mais, tem ainda os bem-te-vis! Esses, mais numerosos, nos espiam do varal da área de serviço, dão vôos rasantes na piscina para se refrescarem e fazem ninho por toda a parte. Nesse sábado, mostrava aos meus amigos um casal de bem-te-vi que iniciava a construção de um ninho bem na ponta de um galho de um cajazeiro, a três metros do local onde estávamos.
Hoje, uma semana depois, observo que o ninho está pronto, os bem-te-vis se cortejam um ao outro e, em breve, a família estará mais numerosa. Um novo casal encherá de cantos o meu jardim.
E falando em bem-te-vi, faço questão de compartilhar com meus leitores um conto de Cecília Meireles, escrito há 45 anos, sobre os bem-te-vis.
“História de bem-te-vis
O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno que se recusava a articular as três sílabas tradicionais do se nome. Limitava-se a gritar: “ … te vi! … te vi!…” com a maior irreverência gramatical. Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras, achei natural que também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano.
Mas logo a seguir, o mesmo passarinho – ou seu pai, seu irmão, como posso saber, com a folhagem serrada da mangueira? – animou-se a uma audácia maior. Não quis saber das duas sílabas, e gritava apenas, daqui, dali, invisível e brincalhão: “… vi! …vi!…” o que me pareceu ainda mais divertido.
O tempo passou. O bem-te-vi deve ter viajado; talvez seja cosmonauta, talvez tenha voado com o seu time de futebol… afinal tudo pode acontecer com bem-te-vis tão progressistas, que rompem com o canto da família e mudam os lemas dos seus brasões. Talvez tenha sido atacado por esses crioulos fortes que agora saem do mato de repente e disparam sem razão nenhuma contra o primeiro vivente que encontram.
Mas hoje tornei a ouvir um bem-te-vi cantar. E cantava assim: “Bem-bem-bem… – te vi! ” Pensei: “É uma nova escola poética que se eleva das mangueiras!…” Depois o passarinho mudou. E fez: “Bem-te-te-te… vi!” Tornei a refletir: “Deve ser pequenino e estuda a sua cartilha…” E o passarinho: “Bem-bem-bem-te-te-te-vi-vi-vi…!
Os ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido coisa igual. Mas as crianças que sabem muito mais do que eu, e vão diretas aos assuntos, ouviram, pensaram e disseram: “Que engraçado! Um bem-te-vi gago!” Então, talvez seja mesmo só gagueira…”
Quanto a mim, fico cá com os meus botões, aguardando como será o canto dos meus novos vizinhos!
JJ você é um mestre do simples e do belo, do primitivo e do natural. Ler um texto seu, equivale a viajar no tempo, no imaginário das historias que costumavamos ouvir na infancia. Bem te li!