“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.
Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.
Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.
Cinéfilo inveterado, é autor do filme "Pelo Ouvido", grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.
Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.
O governante que não se preocupa com os julgamentos aos quais pode ser submetido, invariavelmente será condenado em todos eles.
Há o julgamento popular que é o mais imediato e visível, que graças ao advento da reeleição faz com que o governante subverta céus, terras e mares para não ser condenado, pelo menos não antes de se reeleger, e por isso mesmo acaba sendo condenado em outros julgamentos.
Há o julgamento das cortes de contas, nas várias esferas da jurisdição. Julgamentos em que quase sempre, de uma forma ou de outra, haverá algum tipo de condenação.
Há o julgamento criminal, nos quais ultimamente os nossos governantes têm sido penalizados, mesmo que a justiça também esteja precisando ser julgada.
E há o julgamento da história. Neste julgamento, a pena é o anonimato ou o esquecimento.
Sobre esse julgamento, desde que me entendo por gente, em nossa cidade, São Luís, e em nosso estado, o Maranhão, aqueles que primeiro são sempre lembrados como grandes governantes são respectivamente Haroldo Tavares e José Sarney.
Eu sou um homem de muita sorte. Não que tenha ganhado alguma coisa em sorteio ou em loteria. Isso Jamais aconteceu até hoje.
Minha sorte consiste em quase sempre conseguir aquilo que almejo. Tudo bem que me esforço para isso, mas algumas vezes não consigo o que desejo apenas por empenho, dedicação e esforço, mas por sorte mesmo. As vezes o universo conspira para que eu alcance meus objetivo, algumas vezes até os mais improváveis.
Em 2007, quando estava fazendo a pré-produção de meu filme “Pelo ouvido”, entrei em uma galeria de arte em São Paulo, em busca de um quadro para o cenário do filme, e me deparei com a tela que ilustra esse texto. Parei em frente dela e fiquei maravilhado com a visão que tive, com a mensagem que ela me passava. Senti uma imensa felicidade ao olhar aquela imagem.
Era apenas um corpo languido de uma mulher morena sobre uma cama. Imediatamente imaginei a cena. Um lençol branco como moldura, e sapatos também brancos espalhados pelo chão, completavam o cenário e me davam toda a perspectiva dos acontecimentos pretéritos e futuros. Entrei em uma espécie de transe, passou um filme em minha cabeça.
Ao me deparar com aquele quadro, minha única reação foi dizer para mim mesmo que eu precisar ter aquilo para mim. Queria ser dono permanente daquele sentimento e daquela sensação.
Mas aquele quadro não se encaixava nas necessidades do filme que eu iria realizar e acabei por não o comprar. Optei por outro, um que tinha uma relação mais direta com o filme.
Passaram-se alguns meses e quando estávamos gravando o filme, voltei naquela galeria e para minha surpresa o quadro continuava lá. Não tive dúvida que ele deveria ser meu. Imaginei que muitas pessoas poderiam ter passado por lá e comprado o quadro, mas ele continuava ali, no mesmo lugar, como se estivesse esperando por mim. Eu comprei o quadro e o trouxe para a casa que eu estava construindo, no Araçagy. Uma casa que deveria ser uma espécie de mosteiro e santuário para mim, minhas ideias e meus projetos.
Passeou-se um ano e quebrando todas as expectativas e as regras estabelecidas por alguém que com quase 50 anos, não pretendia mais se casar, encontrei o amor de minha vida, Jacira, a mulher por quem me apaixonei e com quem hoje sou casado, e assim que a vi, descobri que aquele quadro na verdade havia sido para mim, o roteiro, o storyboard, a direção de arte, antecipados, do filme que seria e minha vida dali em diante.
Hoje, 15 anos se passaram, a casa que seria mosteiro e santuário eu vendi, mas o quadro continua em minha parede e a mulher em minha vida… Para sempre.
Há trinta anos, quando meu pai morreu, não tive muito tempo para absorver, entender, nem sentir a falta que ele me faria, pois precisava fazer de tudo para minimamente tentar substituí-lo naquilo que fosse possível. Neste intento eu e meu irmão Nagib nos ajudamos naquilo que era possível e bem ou mal, conseguimos nos sair mais ou menos bem. Diria até que satisfatoriamente bem.
Hoje, passados esses trinta anos, foi mamãe que nos deixou, e ao contrário daquilo que sentimos com a morte de papai, o desamparo é imenso, diria que é total, pois se estávamos, eu e Nagib, e também as outras pessoas de nossa família, minimamente preparados para enfrentar os desafios que nos fossem apresentados na falta de Nagibão, o despreparo para enfrentar a vida sem a presença de mamãe é total.
Para se substituir o provedor, o lutador, o comerciante, o político e mesmo o pai e o amigo, bastava que trabalhássemos incansavelmente como ele fazia, que nos mirássemos em seus feitos e em seus ensinamentos silenciosos. Substitui-lo era uma questão de empenho e trabalho. Para substituir aquela que era a amálgama feita de amor, afeto, compreensão, doçura, carinho, aquela que era nosso escudo e nossa avalista divina, precisaríamos ter algo que sempre tivemos de graça, que jorrava dela como a luz do sol e o vento do mar. Substituir minimamente nossa mãe é algo impossível, pois não estamos equipados nem preparados substituí-la ou imitá-la.
Quando perdi meu pai fiquei durante muito tempo manco e caolho. Temo que perder minha mãe me torne um cego, tetraplégico, com demência e portador de uma profunda tristeza, eternamente.
Mas pensando bem e lembrando das frases que eles dois mais gostavam de repetir: “O difícil se faz logo, o impossível demora um pouco mais” e “Nasci para ser feliz”, vejo que ter tido a oportunidade de ter vivido 34 anos com meu pai e 64 anos com minha mãe, não me deixa nenhuma saída a não ser agradecer pela vida e pelos ensinamentos que eles nos legaram e continuar FAZENDO e sendo FELIZ.
A vida está muito cansativa, principalmente por causa da imensa e absurda exposição a que todos nós somos submetidos através dos mais variáveis dispositivos que compõem as redes sociais.
Quem não está nas redes, não existe. Quem existe, precisa ter zilhões de seguidores para que sua marca pessoal seja valorizada e ele possa ser considerado um influenciador, ou seja alguém que “impõe” suas opiniões sobre seus “seguidores”, uma coisa que beira o fanatismo.
Porém, mais que criticar as redes sociais em si ou mesmo quem a usa como instrumento de trabalho, gostaria de abordar um aspecto delicado desse instrumento, muitas vezes utilizado de forma tirânica, como temos visto ultimamente.
As redes sociais por si só não fazem mal a ninguém nem a coisa alguma, assim como uma arma de fogo, ou um carro. É o bom ou o mau uso dessas coisas que definem o que podem ser.
Quando Andy Warhol disse que no futuro todos teriam 15 minutos de fama, jamais imaginou que iria acertar tanto quanto a fama e errar tanto quanto ao tempo dela. A fama de todo mundo nas redes sociais é por muito, muito tempo e só deixa de existir em casos extremos e raros.
Eu sou o exemplo perfeito de fracasso das redes sociais, tenho poucos seguidores e acredito que não influencio ninguém ou se muito, uma ou duas pessoas que pensam como eu e se vêm refletidos nas coisas que eu mostro, falo e escrevo.
Outro dia, fiz uma postagem onde apresentei as fotos de dois criminosos. Um que roubou, um país inteiro, de diversas formas e através de muitos métodos, mais que isso, fragilizou seu povo, dividindo-o para poder escravizá-lo, e outro que assediou mulheres e cometeu estupro, crimes covardes e hediondos.
Naquela postagem eu dizia que me causava espécie que algumas pessoas perdoavam os crimes de um daqueles sujeitos, mas não perdoavam os crimes do outro.
Houve quem pensasse que eu estivesse comparando os dois criminosos e até seus crimes. Teve quem imaginasse que eu relativizava os crimes e até quem dissesse que eu estava politizando uma coisa que nada tinha de política.
Lembro que uma pessoa me acusou de defender um estuprador, quando na verdade eu deixei claro o seu abominável crime.
Uma outra pessoa me mandou ter cuidado com aquele tipo de mensagem, pois elas normalmente causam ruído, ao que eu reconheci a possibilidade, mas ressaltei que é preciso que se investigue para saber se o ruído é proveniente do transmissor ou do receptor.
Depois de toda aquela polêmica, eu fiz uma outra postagem, que transcrevo mais abaixo, onde eu esclarecia peremptoriamente a minha intenção ao publicar aquela matéria.
“Vejam bem, essa postagem não é sobre esse ou aquele criminoso nem sobre os crimes que eles cometeram, nem mesmo sobre perdoá-los ou não. Essa postagem é sobre a hipocrisia das pessoas que agem de maneira diferentes em situações parecidas, pessoas que usam pesos diferentes e medidas distintas em casos semelhantes, pessoas que acham que a razão está sempre do seu lado, que sistematicamente se vitimizam e costumam colocar sempre a culpa nos outros!…” Ainda assim algumas pessoas fizeram questão de não entender. Não sei até agora se o ruído está no transmissor ou no receptor, mas que ele existe, isso não resta a menor dúvida, e está ficando a cada dia mais insurpotável e ensurdecedor.
Tenho pensado muito sobre minha mãe e não é difícil entender que por pensar muito em alguém ou em alguma coisa, seu subconsciente fique impregnado desse assunto que lhe acabe por fazer sonhar com ele.
Sonhei com minha mãe comentando sobre seu falecimento, seu velório, seu enterro, sua missa de 7º dia e sobre nossa vida sem a presença física dela.
Ela disse muitas coisas que não dariam para colocar em um único texto. Falarei delas depois, hoje quero falar da gratidão dela pelo carinho de todos, em especial sobre o apoio e a presença constante de amigos meus e de meu irmão, Nagib, há todo instante nos apoiando. Em nossa conversa ela disse que foi para isso que ela nos criou, para sabermos cultivar amigos verdadeiros, que nos apoiassem quando precisássemos e para que nós estivéssemos com eles quando eles de nós precisassem.
Depois que acordei, corri e vim escrever a poesia abaixo, inspirado naquilo que minha mãe me ensinou.
Meus amigos
Tenho amigos pretos e meu amor por eles não é menor por serem pretos.
Tenho amigos feios e meu amor por eles não é menor por serem feios.
Tenho amigos gordos e meu amor por eles não é menor por serem gordos.
Tenho amigos idosos e meu amor por eles não é menor por serem idosos.
Tenho amigos jovens e meu amor por eles não é maior por serem jovens.
Tenho amigos indígenas e meu amor por eles não é menor por serem indígenas.
Tenho amigos não binários e meu amor por eles não é menor por serem não binários.
Tenho amigas mulheres e meu amor por elas não é menor por serem mulheres.
Tenho amigos muçulmanos e meu amor por eles não é menor por serem muçulmanos.
Tenho amigos judeus e meu amor por eles não é menor por serem judeus.
Tenho amigos hinduístas e meu amor por eles não é menor por serem hinduístas.
Tenho amigos espíritas e meu amor por eles não é menor por serem espiritas.
Tenho amigos ateus e meu amor por eles não é menor por não acreditarem em Deus.
Tenho amigos agnósticos e meu amor por eles não é menor por não terem religião.
Tenho amigos cristãos e meu amor por eles não é maior por serem cristãos.
Tenho amigos pouco inteligentes e meu amor por eles não é menor por serem pouco inteligentes.
Tenho amigos esquerdistas e meu amor por eles não é menor por serem esquerdistas.
Tenho amigos direitistas e meu amor por eles não é maior por serem direitistas.
Tenho amigos com problemas físicos e meu amor por ele não é menor por terem problemas físicos.
Tenho amigos autistas e meu amor por ele não é menor por serem autistas.
Tenho amigos pobres e meu amor por ele não é menor por serem pobres.
Tenho amigos ricos e meu amor por ele não é maior por serem ricos.
Tenho amigos flamenguistas e meu amor por ele não é menor por serem flamenguistas
Tenho amigos vascaínos e meu amor por ele não é maior por serem vascaínos.
Tenho amigos chatos e meu amor por eles não é menor por serem chatos.
Tenho amigos simpáticos e meu amor por eles não é maior por serem simpáticos.
O que eu não quero, é ter amigos insensíveis, desumanos, cruéis e malévolos, que não sejam honrados, nobres, altruístas e generosos.
Em março de 2014, publiquei um texto cujo título era “O maior amor de minha vida”, sobre a operação cardiovascular que minha mãe fizera, em São Paulo. Na verdade, eu nem me lembrava mais daquele texto, até o padre Cláudio rememorá-lo, na homilia da missa de corpo presente que ele proclamou no velório de minha mãe.
É importante que eu diga que antes de Cláudio, estiveram conosco o padre Crispim, pároco da igreja que minha mãe frequentava, que disse belas palavras e cantou algumas das músicas que minha mãe mais gostava, e o pastor presbiteriano, António, que ela conhecera através de amigos e que passou a frequentar a casa dela para administrar estudos bíblicos.
Eu já conhecia António, mas não imaginava que ele era amigo de minha mãe e que frequentava a casa dela!
Em sua pregação no dia do velório de minha mãe, António contou uma história linda, estabelecendo uma metáfora poderosa sobre o cuidado que um pai tem para com seus filhos. Ele contou-nos que um filho adormecera na sala, assistindo televisão e o pai dele o carregou até seu quarto, o cobriu com um lençol e no dia seguinte, quando o garoto acordou, ficou intrigado, pois se lembrou que adormecera num lugar e despertara em outro, como isso era possível!?… E o pastor nos respondeu: “É o amor do pai que nos carrega, aconchega e protege, foi isso que aconteceu com Dona Clarice”.
Mas voltemos ao Cláudio. Ele não é apenas um padre! Pedagogo e psicólogo, ele é, já faz algum tempo, um religioso de referência, não só em São Luís, como também em todo estado do Maranhão, e uma das coisas que o fazem se diferenciar, é sua incrível capacidade de abordar, em suas homilias, temas que preenchem todos os espaços em que tais assuntos precisam ser observados. Naquele dia ele trouxe a baila o texto que eu escrevera 10 anos antes, em que eu declarava que o maior amor de minha vida era minha mãe.
Naquele mesmo dia, depois do enterro, ao chegar em casa fui procurar em meus arquivos o tal texto que Cláudio se referira em seu sermão. Quando o achei, fiquei perplexo com o que eu havia dito e escrito. Era exatamente aquilo que Cláudio havia falado e é exatamente tudo aquilo que eu estou sentindo agora.
Vou transcrever um trecho daquele texto para que você que me dá a honra de sua audiência, possa entender exatamente o que eu penso e o que eu sinto sobre a morte, não só de minha mãe, mas sobre ela de modo geral.
“Por que eu estou publicando esse texto hoje? (…) Porque daqui a muitos anos, na ocasião em que ela tiver ido, não escreverei sobre tal evento, não lamentarei nada, pois o tempo que ela tem passado conosco tem sido tão engrandecedor que já está eternizado em nossas vidas.
Escrevi este texto para dizer que minha mãe jamais morrerá enquanto alguém a quem ela tenha se dedicado, que ela tenha amado, se lembre dela.
Escrevi este texto para comemorar a vida da pessoa que mais amo e para agradecer a todos que a amam também”.
Pois bem, eu proclamo novamente, a quem interessar possa, que minha mãe, Clarice Pinto Haickel, não morreu e não morrerá enquanto alguém que a conheceu e a amou ou foi amado por ela, se lembrar dos momentos maravilhosos que passaram juntos.
Tenho dito para meus familiares e para alguns amigos, que minha mãe não morreu, que ela está em uma longa viagem, e que entrará sempre em contato conosco, nos dedicando a mesma atenção e o mesmo carinho de sempre, toda vez que nos lembrarmos dela, e que se observarmos atentamente nossas lembranças sobre ela, sentiremos os conselhos que ela nos daria se estivesse fisicamente ao nosso lado.
Na ausência física dela, minha tristeza não será uma tristeza egoísta, será uma tristeza altruísta. Não ficarei triste pela falta que a ausência dela me fará, pela falta que sentirei de suas palavras carinhosas e de suas orações, não ficarei triste pela saudade que eu sentirei dela, de seus conselhos ou de suas brincadeiras. Minha tristeza será por não mais poder proporcionar a ela algumas das coisas que ela mais amava na vida: os almoços da família, às quartas e domingos; nossa juçara geladinha, com camarão seco e farinha d’água aos sábados; os passeios, junto com toda a família, em uma van alugada, por sua amada cidade de São Luís, passando pelos locais que marcaram a vida dela e as nossas; as missas do padre Cláudio, no Cantinho do Céu; os sabonetes, as caixas e os bordados que ela passava o ano inteiro preparando para o Bazar de Natal com suas amigas…
Minha tristeza será por não poder proporcionar a ela aquilo que ela realmente mais amava, lógico que depois de Deus, e de nós, sua família e seus amigos: a alegria e o prazer de nossa companhia.
Revoltado!? …Inconformado!?… Nunca!!!… Como eu posso ficar revoltado ou inconformado com a elevação de minha mãe? Isso nunca!!!… Agora eu a terei para sempre em minha memória e poderei fazer dela minha eterna companheira de pensamentos e orações, inclusive, as poucas que sei, foi ela quem me ensinou.
Tudo bem que eu não vou mais poder diariamente ligar para ela para dizer: “Mãe, liguei só para dizer que te adoro”. Não vou mais ouvir ela me chamar de “meu Jotinha”, nem vou mais ouvir dela as ironias finas que ela dizia ter herdado de meu avô, “Seu Pinto”, mas sempre ressaltando que mais afiada que ela nesse ofício, era minha tia e madrinha, Maria da Gloria.
Não vou mais poder contar para ela as histórias bíblicas que ela tanto gostava. Ela tinha a mesma reação que eu tinha, quando ela lia para mim os contos de Grimm e de Andersen, mesmo quando eu propositalmente destorcia as histórias, dando vazão ao meu agnosticismo.
Eu tive o privilégio de, da mesma forma como ela fazia comigo quando eu era criança, dar-lhe na boca sua última refeição. Naquele momento ela não era mais a minha mãe, naquele momento ela era minha filha.
Enquanto brincava de aviãozinho com as colheradas que levava até sua boca, ela suspirava e dizia: “Aí meu Deus!…” e gemia, mesmo que não sentisse dor. Ao ouvi-la chamar por Deus, a interpelei com uma provocação quase teológica: “Mamãe, não fica chamando por ele que ele acaba vindo, pois ele gosta muito de ti… E sabe mãe esse seu amigo anda muito ocupado, ele está dando plantão na Palestina, na Ucrânia, além de passar por Rio e Sampa, quatro vezes por dia. Ela deu um sorrisinho maroto e respondeu: “E tu já te esquecestes que ele está em todos os lugares, todo tempo!?”
Enquanto escrevia esse texto fiquei pensando, sobre qual evento mais havia me emocionado nestes dias de doença, internação e elevação de minha mãe, e descobri que foram as mensagens que recebi das pessoas que trabalhavam com ela. Litiane, sua companheira de aventuras culinárias, mandou mensagem pedindo que eu dissesse a minha mãe que ela estava morrendo de saudade dela, que ela voltasse logo pra casa; Luís, seu aprendiz de feiticeiro, disse: “Seu Joaquim, amanhã vou visitar minha mãezinha”; e Pedro, seu motorista, que me puxou pelo braço perguntou em tom grave e austero: “Quando eu vou levá-la para casa, seu Joaquim?”
Durante quase todo o tempo eu me mantive forte e não chorei, mas me desfiz em lágrimas todas as vezes que essas pessoas demonstraram seu incondicional amor por minha mãe, pois assim como eu, eles eram como filhos para ela.
Minha mãe viveu pouco mais de 94 anos, dos quais 64 deles eu tive o privilégio de estar junto dela. Ela partiu às 19 horas e 7 minutos do dia 27 de dezembro de 2023 e a foto que ilustra esse texto é o registro imagético da confraternização de Natal de nossa família, no dia 24 de dezembro.
Num domingo desses de calor escaldante, depois do sagrado almoço na casa de minha mãe onde me refastelei com a mais deliciosa carne assada na grelha, puxada na manteiga e no alho, feita por mãe Teté, regada pelo maravilhoso feijão mulata gorda e duas colheres de arroz branco, soltinho, feitos por minha mãe, voltei para minha casa e resolvi rever alguns filmes que marcaram a minha vida e de uma forma ou de outra alicerçaram o edifício de minha cinefilia.
Resolvi começar por um dos filmes que mais gosto, um filme que muita gente pensa que é de guerra, mas é de amor, que não tem nenhum personagem feminino em cena de relevância, pois ele fala de um tipo de amor diferente, o amor de um homem por uma ideia, por uma causa, por um povo: “Lawrence da Arábia”.
Como estava cansado, pois aquela manhã havia sido repleta de atividades: cumpri rigorosamente o sétimo mandamento dado por Deus à Moises (cobicei só a minha, e muito), depois fui para a praia onde joguei duas partidas de vôlei e em seguida pratiquei meia hora de intenso frescobol, acabei apagando antes da célebre cena em que Peter O’Toole aparece vestido em seu traje árabe branco e anda sobre o vagão de um trem descarrilhado.
Naquela tarde dormi um profundo e pesado sono e tive um sonho que valeu por muitos filmes. Foi um sonho muito interessante, tão interessante que mais parecia um filme roteirizado e dirigido por dois dos meus cineastas favoritos, Frank Capra e Stanley Kubrick.
Sonhei que eu era médico. Um tipo diferente de médico, pois ao invés de remédios, eu receitava filmes para meus pacientes. Neste sonho eu estava em meu consultório, que tinha aparência de uma sala de montagem de filmes, com uma velha Moviola Atlas de um lado e um divã do outro, onde pessoas das mais diversas procedências iam em busca de cura para os males que os afligia.
Lembro que um dos primeiros pacientes que apareceram em meu consultório foi um sujeito de baixa estatura, meio curvado, com cara de fuinha e já na casa dos 80 anos. Olhei para ele e imediatamente me veio à mente a figura de Ebenezer Scrooge célebre personagem de Charles Dickens. Nem pestanejei, receitei-lhe três filmes que se não o curassem, pelo menos iriam melhorar muito suas deficiências: “Adorável Vagabundo” na veia, “Assim estava escrito”, em cápsulas e um escalda pés com “Cocoon”.
Um amigo me ligou pedindo que eu atendesse emergencialmente uma senadora. Ela entrou em meu consultório e logo vi que ela precisava do melhor dos filmes de Frank Capra, “Mr. Smith goes to Washington” que no Brasil chama-se “A mulher faz o homem” e em Portugal, “Peço a palavra”. Por precaução receitei-lhe também “Nasce uma estrela” na versão com Bárbara Streisand.
Certa manhã, bem cedinho, me apareceu um antropólogo italiano, e depois de examiná-lo receitei para ele “A guerra do fogo” e “Agonia e Êxtase”. Lembro que aquele dia foi bastante movimentado, pois apareceram em meu consultório dois amigos, um padre católico e um pastor evangélico e prescrevi para eles, para que usassem juntos, “A Missão”, “O Mahabarata”, “A última tentação de Cristo” e “A vida de Brian”. Para estes pedi que voltassem assim que tivessem terminado os medicamentos, pois gostaria de ver os resultados.
Naquela mesma tarde fui procurado por um polêmico juiz. Pedi que ele se recostasse no divã, conversei um pouco com ele para saber quais males lhe afligiam e depois de uma minuciosa anamnese, indiquei-lhe “O caso dos irmãos Naves”, combinado com “O galante aventureiro”, mas caso não encontrasse este remédio antigo, poderia usar “Roy Bean, o homem da lei”, dirigido por John Huston com um elenco monumental. Já na porta do consultório o tal juiz me perguntou se eu poderia receitar-lhe algo que o fizesse dormir bem, pois segundo ele, há muito seu tempo de sono era pouco e não era restaurador. Disse-lhe então que ele procurasse algo leve, que o fizesse rememorar sua infância, algo como “Os Goonies”, “Willow, na terra da magia” ou algo mais juvenil, como “Volta ao mundo em 80 dias”, o original, ou mesmo algo mais adulto, mas também revigorante como “Hair”.
Acordei extasiado. Voltei a assistir “Lawrence” e depois chamei minha amada Jacira para assistir comigo “Cinema Paradiso”, fechando com chave de ouro um domingo perfeito, onde amei, pratiquei esportes, convivi com meus amigos e minha família, comi uma refeição divina, assisti filmes espetaculares, dormi e sonhei um sonho maravilhoso.
Na manhã seguinte liguei para meu psicanalista cancelando a sessão daquele dia pois ainda estava sob o maravilhoso efeito daquele sonho.
Um amigo meu, um desses bem marotos, me ligou um pouco antes da sessão que seria realizada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal que sabatinaria Paulo Gonet e Flávio Dino para as vagas abertas na Procuradoria Geral da República e no Supremo Tribunal Federal, perguntando quais seriam as perguntas que eu faria para ambos caso fosse um dos senadores da CCJ.
Inicialmente disse a ele que não estava preparado para responder, assim de supetão uma questão desta, uma vez que não estudei os casos mais profunda e detalhadamente. Ele insistiu e disse que me conhecia o suficiente para saber que eu tenho uma boa performance no improviso e pediu então que eu improvisasse. Achei engraçado e resolvi ceder.
Disse a ele que as perguntas para o Gonet deveriam ser técnicas, uma vez que a função de procurador geral da república, que faz o papel de promotor de justiça, de advogado do povo, tem aspectos muito técnicos que precisam ser observados e respeitados.
Disse a ele que essa função de advogado do povo ou da sociedade é tão importante para o pleno e satisfatório funcionamento da democracia americana que em algumas cidades e em alguns estados daquele país, os ocupantes desses cargos são eleitos por voto direto da população, de maneira semelhante aos representantes do poder legislativo.
Para Gonet as perguntas seriam relativas ao devido processo legal. Ele deveria ser arguido sobre o funcionamento do poder judiciário e do processo judicial. Ele deveria responder, sem rodeios ou subterfúgios, se ele concorda com aquilo que prevê a Constituição Federal, que diz literalmente que cabe ao ministério público a iniciativa do processo judicial.
Ele deveria responder se na opinião dele é licito que um processo judicial seja aberto por iniciativa de algum juízo ou alguma corte de justiça, em qualquer uma de suas instâncias. Ele deveria dizer se em um mesmo processo, as funções de denunciante, investigador, acusador e juiz podem ser exercido pela mesma pessoa, e qual deve ser a posição do procurador geral da república em um caso onde isso esteja configurado.
Disse ao meu interlocutor que qualquer outra pergunta que fosse feita ao candidato a vaga da PGR seria desnecessária, pois em minha modesta opinião, seriam essas as respostas mais importantes.
No que dissesse respeito a Flávio Dino, eu faria a ele essas mesmas perguntas feitas a Gonet, mas antes perguntaria se ele aprovaria o nome de um postulante a uma vaga de emprego se este mentisse na entrevista para o cargo que postula. Tenho certeza que a resposta dele e assim como a de todas as pessoas corretas e coerentes seria que não. Então faria a ele perguntas identitárias. Pediria que ele declarasse seu nome, sexo ou gênero, raça ou coloração epitelial, religião, estado civil, grau de instrução e profissão.
Depois de ouvir suas respostas, perguntaria se ele se sentiria confortável para julgar uma causa que envolvesse alguém de quem ele é declaradamente um desafeto, um adversário, um inimigo.
E por fim, e antes de direcionar a ele as mesmas questões que foram direcionadas a Gonet, comentaria com ele que em uma entrevista, um repórter perguntou-lhe se ele era comunista e que a resposta dele àquela pergunta foi “sim, sou comunista, graças a Deus”, e que seria importante que todos soubessem se ele é realmente comunista e se em caso afirmativo, se ele acredita que suas convicções ideológicas vão permitir que ele possa julgar com total isenção causas que se contraponham aquilo que ele professa ideologicamente.
Disse ao meu interlocutor, que eu acreditava que mais que isso, seria completamente improdutivo fazer qualquer outro tipo de pergunta.
Por fim meu interlocutor me fez a pergunta fatal, me deu o golpe de misericórdia. Perguntou-me se eu fosse um dos senadores, se eu votaria contra ou a favor os indicados.
Eu dei uma sonora gargalhada e respondi sem pestanejar e justifiquei minha escolha: “Sim, eu votaria favorável às indicações, por motivos muito simples e claros. Os dois possuem os requisitos exigidos para ocuparem os referidos cargos, como manda a Constituição Federal, da qual sou um dos signatários, e penso que ambos sejam bem melhores que muitos que aqueles que poderiam ser indicados em seus lugares, além do que, no caso de Flávio, ele é melhor que aqueles que já ocupam uma cadeira em nossa Suprema Corte.
Me pediram para usar uma única palavra para definir “Napoleão”, o novo filme do genial diretor Ridley Scott e eu escolhi uma palavra que para mim é muito cara, quando se trata de cinema e de um cineasta que eu admiro: “decepcionante”.
Em primeiro lugar, a história do corso, não cabe em um filme, já que comercialmente eles não devem ultrapassar, a casa dos 150 minutos, e olhe lá. O filme tem quase isso, mas deixa de fora fatos indispensáveis para se apreciar o contexto não só da história em si, mas principalmente de tudo que envolve os acontecimentos de um tempo que foi marcante para a evolução e o crescimento da humanidade, naquele espaço que era então o centro do mundo.
Em segundo lugar, um filme que retrata figuras históricas de extrema relevância, como desse general baixinho que submeteu e conquistou durante algum tempo, alguns dos países e algumas culturas mais importantes da terra, não podem se descolar dos relatos fidedignos dos acontecimentos, sob pena de apresentar contextos através de pontos de vista míopes e coxos.
Em terceiro lugar, a liberdade criativa e autoral não pode, de forma avassaladora, ser exercida neste tipo de história, sob pena de desagradar quem minimamente conhece os fatos e contribuir para construir na cabeça de quem não os conhece, ideias equivocadas sobre eles.
Se eu não conhecesse a história, se este fosse o meu primeiro contato com Bonaparte, o acharia um idiota como homem, mesmo que o aplaudisse pelo que fez em Austerlitz, para depois tê-lo como um completo temerário pelo que fez em Waterloo.
Dizem que este filme terá uma outra montagem para exibição exclusiva na Apple TV, com mais de 4 horas de duração. Estou ansioso para assisti-la, para poder ver onde foram parar pedaços importantes da história que foram arrancadas dessa montagem que vi, por exigência prática da exibição em salas de cinema.
Pra falar a verdade, eu nunca vi um filme cuja montagem deixasse o espectador como eu, mais aflito e incomodado, pois conhecedor da história, vi, ou melhor, não vi retratado na tela, pedaços importantes e capazes de dar conectividade com o desenrolar dos acontecimentos.
Ridley Scott é certamente um dos melhores cineastas de todos os tempos. Ele tem filmes extraordinários, e quase não possui em seu portifólio nenhum fracasso. Nem se pode dizer que seu “Napoleão” é um fracasso, primeiro porque a sala estava lotada e segundo pela maravilhosa performance que ele apresenta do ponto de vista técnico do filme, pois a cenografia, o figurino, a fotografia, as cenas de batalhas, são realmente extraordinárias, mas um filme desta grandeza não pode ser insuficiente nem quanto ao roteiro, nem no tocante a montagem!
Quem já fez filmes como “Os Duelistas”, “Alien – O Oitavo Passageiro”, “Blade Runner – O Caçador de Andróides”, “Thelma e Louise”, “1492: A Conquista do Paraíso”, “Gladiador”, “Falcão Negro em Perigo”, “Cruzada” e “Casa Gucci”, pode se dar ao luxo de fazer um filme controverso, como este “Napoleão”.
Decepcionante não quer dizer que “Napoleão”, de Ridley Scott é um filme ruim. Isso não. Ele é simplesmente decepcionante para pessoas que como eu esperava outra coisa.
A sensação que eu tive ao assistir esse filme, é mais ou menos a mesma sensação que teve um dos mais icônicos personagens de Jorge Amado, o meu xará, Quincas, que acostumado a tomar uma dose deliciosa de pinga, num de seus bares favoritos da cidade de Salvador da Bahia, deram-lhe, no copinho de cachaça, uma talagada de água. Resultado: Quincas veio a óbito, mas passou toda história passeando com seus amigos pela cidade, como sempre faziam os farristas.
Fui ao cinema tomar uma dose de um Napoleão e degustei outro.