Cidade linda, comida ruim, papo bom.
Estávamos eu e Jacira em uma taverna, em Siena, no coração da Toscana, fazendo uma das coisas que mais gostamos de fazer quando estamos viajando.
Observamos os ambientes e as pessoas à nossa volta. Demos conta de que se tratava de um prédio realmente muito antigo, talvez tivesse uns 600 anos. Localizava-se em uma das ruelas próximas ao Doumo da cidade, numa ladeira íngreme.
O atendimento variava de sofrível a péssimo. O pão italiano característico tinha menos sal que de costume, fomos salvos pelo bom azeite toscano, sal e pimenta. Fizemos escolhas erradas no cardápio, mas às 16 horas quase todos os lugares já estavam fechados para o almoço.
Aquele foi o pior almoço de toda a viagem. Culpa nossa. É praticamente impossível comer mal na Toscana.
Como compensação à má comida e ao rude atendimento pudemos desfrutar de um debate acalorado travado pelos ocupantes de uma mesa que estava ao nosso lado.
Quando chegamos observamos que alguns casais discutiam de forma italianesca. Bem poderia ser “a La” napolitana, milanesa, calabresa ou siciliana. O assunto versava sobre arte. Eles comentavam a importância da arte, alguns pareciam bastante cultos e faziam colocações que renderiam horas de debate.
Em certo momento eles se embrenharam em uma polêmica sobre a fotografia. Uns argumentavam que fotografia não poderia ser considerada arte e outros tratavam de defender a ideia de que ela era sim uma das artes modernas.
Jacira identificou entre os personagens daquela discussão uma moça que parecia ser fotografa, pois trazia para si o foco do debate. Não chegamos a uma conclusão definitiva se ela era realmente fotógrafa ou apenas uma apreciadora dessa atividade, mas isso pouco importa.
Já estávamos sendo mal servidos, famintos, cansados e passamos a conversar a respeito do mesmo assunto, e quando podíamos observávamos o que diziam os patrícios de Paolo Rossi.
Fotografia é ou não é arte? Existem argumentos de sobra para provar que sim, fotografia é arte, mas para bons argumentadores sempre há espaço para transformar um assunto, aparentemente tão simples e bem resolvido, em uma polêmica acalorada que na pior das hipóteses nos faz pensar e quanto a mim e a minha mulher, naquela tarde nos distraiu, fazendo com que o serviço ruim e a má comida não maculassem uma viagem tão maravilhosa.
Os macarronistas que defendiam a tese que fotografia não é arte eram mais incisivos e duros, como compete a todos aqueles que desejam demolir uma tese que parece ser aceita como verdadeira pela maioria das pessoas.
Para eles arte era música, dança teatro, literatura. Compraram e vendiam a tese de que arte era tudo aquilo que os gregos estabeleceram como sendo arte. Argumento insuficiente e frágil, tendo em vista que o estabelecimento dessa lista de artes se deu há 3.000 anos e no mundo de hoje outros fazeres humanos podem e devem ser considerados arte.
Alguém contra-argumentou que se assim fosse o cinema não poderia ser considerado arte, pois não há cinema sem fotografia. Fez-se silêncio e em seguida um exaltado polemista diz que a fotografia é apenas uma engrenagem da intrincada máquina da arte cinematográfica.
Nessa hora quis intervir, mas o olhar de Jacira me desautorizou. Ainda bem que o que eu ia dizer foi dito por outro participante daquela mesa: A literatura, através do roteiro, e o teatro, através da encenação dramatúrgica, são engrenagens da intrincada máquina da arte cinematográfica e individualmente também são artes, logo a fotografia pode também ser considerada arte.
Nessa hora saltou o exaltado e disse que arte é tudo o que a inventividade humana cria, não apenas o que ela opera ou administra. Que para ser considerada artística a atividade humana tinha que ser transformadora e criadora. Que o artista deveria ser uma espécie de Deus criador, que colocasse palavras onde não as tinha que esculpisse e pintasse que coreografasse movimentos e que criasse sons.
Fez-se novamente silêncio só interrompido quando aquela moça que pensamos ser fotógrafa perguntou ao seu oponente se ele acredita que pelo fato de um fotógrafo captar o instante de uma paisagem, de uma pessoa, de objetos, se nisso por si só já não havia na fotografia o poder criador dos deuses? Indagou se ele já havia pensado que se pra nada servisse a fotografia ela não deveria ser considerada arte pelo simples fato de esculpir o tempo, desenhar sentimentos, poetizar imagens, dramatizar cenas.
Por fim eles já estavam discutindo a qualificação e a valoração da arte e da fotografia, tema delicado e perigoso que não fiquei para ouvir, pois a conta chegará e nós tínhamos uma cidade belíssima para conhecer.
Não sei se foi o político Joaquim Haickel, se foi o artista, escritor e cineasta, quem mais gostou daquele debate. O político gostou da polêmica, das teses e das antíteses. O artista gostou do tema. O gourmet glutão gostou pelo fato de ter tirado minha atenção da comida não recomendável.
Continuamos a nossa viagem conhecendo algumas das pequenas cidades da Toscana. Em nenhum outro lugar comemos tão mal, mas travamos conhecimento com muitas outras pessoas interessantes.
Para mim fotografia é arte e fotógrafo é artista. Quem bem exerce essa atividade é mestre de uma das mais complexas formas de expressão criadora do homem.
Para provar definitivamente que fotografia é arte, basta compará-la às artes tradicionais. Ela tem as mesmas funções das demais e como as demais engrandece o ser humano.
Para mim, um apaixonado por memória, por lembranças, a fotografia perpetua o tempo nos permitindo voltar nele. Isso é coisa de artista, de um deus criador.