O Ingaúra
Boa parte de minha infância, passei num lugar que se eu disser o nome, só meia dúzia de pessoas de minha idade saberá onde é, mesmo que esse lugar seja hoje habitado por milhares de pessoas, que nem desconfiam que ali já foi um dia um verdadeiro paraíso.
Meu pai tinha um sítio no Ingaúra, um lugar localizado entre o que hoje são os bairros do Turu, Cohama, Vinhais, Bequimão, Angelim, Cruzeiro do Anil e Cohab, citados aqui em sentido anti-horário para ajudar as pessoas em sua localização espacial.
Era uma imensa área de mata natural, repleta de árvores frutíferas centenárias – mangueiras, jaqueiras, cajueiros, buritizeiros e jussareiras, além dos nativos babaçuais – recortada por dois ou três cursos d’água que desembocavam mais adiante e abaixo, no Rio Anil.
Não era só meu pai que tinha um sítio naquela região. Lembro que “tio” William Nagem tinha uma fábrica de papel bem ao lado do nosso sítio; que o deputado Vieira da Silva, tinha uma chácara um pouco mais acima, pro lado do Vinhais; que mais para o lado esquerdo, na direção do Angelim, o Major Dominice tinha uma propriedade; e que “tio” Daniel Aragão, tinha uma chácara, na estradinha que levava ao Turu Velho.
O certo é que, toda sexta-feira, depois da aula no Colégio Batista, entrávamos em nossa Kombi, que já nos esperava carregada de mantimentos, para passarmos o fim de semana no sítio.
Nossos finais de semana eram maravilhosos, desde o trajeto de ida, quando passávamos por dentro de pequeninos igarapés de aguas cristalinas, onde os peixinhos pulavam, até a volta, nos finais dourados das tardes de domingo, quando, exaustos entravámos cambaleando na Kombi e saíamos dela quase sempre carregados, adormecidos pelo sacolejo, do “pão de forma”, apelido que demos àquele carro de pouca aerodinâmica.
Se fosse hoje, meu pai seria processado por meu amigo Fernando Barreto, pois ele usou um dos riachos que desciam de um morro ao fundo de nosso sítio, fazendo dele uma piscina natural, de uns 90 centímetros de profundidade, cercando-o com paredes de pedras, mas fazendo com que ele fluísse em uma pequenina cachoeira e continuasse seu percurso até se jogar no leito do caudaloso do Rio Anil.
Ao lado da piscina, havia um campinho de futebol, forrado de areia de praia, onde fazíamos jogos e torneios, enquanto o sol permitisse. Lá era o nosso campo de batalha. Para lá trazíamos nossos amigos da cidade. Meu pai também trazia os amigos dele.
Na parte mais alta do sítio, ficava a casa, reduto das mães, Clarice, Estelita e Yolanda. Lá quem mandava eram elas. De lá é que vinham as farofas de ovo ou de sardinha, repletas de cebolas e tomates, regadas com Cola Jesus, Q – Suco ou refrescos naturais, de preferencia de maracujá para acalmar os meninos danados.
Por trás da casa havia um espaço que quem mandava erámos nós. Era onde nós construíamos nossas cabanas, usando material retirado das matas em volta, sempre sobre a supervisão de Stenio e com a ajuda de Gilvan, Ivan e Gilmar, filhos dos caseiros, dona Nazaré e “seu” Zé do Vale.
No sítio, meu pai criava vacas, porcos e galinhas, o que fazia com que nós tivéssemos sempre, carnes, ovos e leite frescos em nossa casa.
Aqueles foram tempos fantásticos. Tempos em que forjamos nossos caracteres no fogo da felicidade de infâncias plenas, cheias de descobertas naturais, coisas que não são mais possíveis de acontecer hoje em dia.
Não houve como proporcionar para nossos filhos as mesmas aventuras e as mesmas felicidades com as quais nos foi possível ser quem somos, não é possível fazer com que nossos netos possam ter aquilo que tivemos.
Não sei se isso é bom ou ruim, só sei que em algumas sextas-feiras, assim, por volta do meio dia, fico querendo entrar em uma Kombi que me leve para o sítio do Ingaúra…
Numa dessas sextas-feiras, entrei em meu carro e me dirigi para o lugar onde era o sítio de meu pai. Por mais incrível que possa parecer, a rua de acesso é a mesma que meu pai construiu há mais de cinquenta anos, só que agora ela está asfaltada. Do lado direito dela, ainda é possível se ver as ruínas das pocilgas e ao olhar para lá, lembrei de Barão, um porco gigantesco, da raça Hampshire, que sendo imenso, nós o montávamos, como fazíamos com os cavalos.
Mais adiante, do lado esquerdo, vi que construíram uma igreja, exatamente no lugar onde era a casa de “seu” Sérgio e dona Maria, um casal de velhinhos que já moravam no sítio quando meu pai o comprou, e lá ficaram até morrerem. Ao lado da casa deles, havia um cajueiro de caju-anão, cujo caule, em parte, crescera em paralelo ao chão e nós nos balançávamos nele. Mais adiante, do outro lado da rua, era onde ficava a nossa casa, o campinho de futebol e a piscina do riacho… Lá existem hoje milhares de casas. É o Residencial Pinheiros, e por lá ninguém é capaz de imaginar alguma das histórias maravilhosas de nossa infância.