A doença do governador
Antonio Cliff
Postdoctoral Fellow de psicanálise da John Hopkins University
Passei alguns anos fora do Maranhão para fazer o meu doutorado em Baltimore, na John Hopkins University. Voltei para passar alguns dias e fiquei escandalizado com o que vi no nosso Estado. Era impossível pensar que o pupilo do Sarney, aquele a quem ele dera todas as oportunidades na vida, iria traí-lo da maneira mais ignominiosa e com inacreditável conduta. Mas isso me dá matéria para recordar um dos meus professores mais brilhantes, o doutor Moore sobre suas dissertações sobre a traição.
Freud buscou sempre seus exemplos patológicos em personagens literários. E, assim, valeu-se de Lady Macbeth para simbolizar a mulher destruidora que obriga o marido a matar o bondoso rei Duncan, seu virtual pai, para roubar-lhe o reino e fazê-la rainha. Essa mulher é a imagem de tudo que pode ser diabólico. Ela incentiva o marido ao parricídio e diz: Tu não és homem? Mata. Eu te abjuro se não o fizerdes. Macbeth assim se conduz e comete um dos maiores atos de traição. Depois, ele é atormentado pelo remorso e ela retruca: O que foi feito não pode ser desfeito.
O sangue não sai das mãos dele nem das dela. Ela procura lavá-las. Mas não consegue. Elas jamais ficam limpas. O odor da traição também não sai e Shakespeare, na tragédia de Macbeth, diz que nem todas as águas dos oceanos, nem todos os perfumes do mundo limparão a cor nem o cheiro da traição.
Macbeth é rei, ela é rainha, mas o remorso bate em seu corpo. E vem a maldição: Não dormirás jamais. E ele não dorme e exclama: O inferno é escuro. Quem poderia pensar que o Velho tivesse tanta força? Ainda sinto o odor da traição.
Levado pela mulher ele constrói sua grande desgraça e diz: Não há remédio que cure uma consciência atormentada. Perdi a honra, a lealdade, o amor, os amigos.
Ele fica doente preso pelo remorso, pelo ato vil que praticou. Assim está o governador. Por mais monstro que seja ele não pode deixar de sentir o que fez. Sua consciência o atormenta. Ela pode ser chamada de hepatite, depressão, quarto caído e aleijado. Mas o que tem realmente é aquilo que ele não pode, como Macbeth, afastar: o odor da traição, sua consciência queimando.
Quando voltar à universidade, vou relatar esse complexo clássico de Lady Macbeth e Macbeth, que Freud dizia que se fundiram na mesma desgraça. Ela suicida-se e ele desaparece por não ter filho varão.
O padre Vieira fez um sermão sobre as mulheres fatais que levaram os homens à desgraça: Herodias, Bersabé, Cleópatra e outras. Destas mulheres diz ele: tu es diaboli janua. (Tu és a porta por onde entra o diabo ao homem.)
A doença do governador José Reinaldo não precisa ser desvendada: é o complexo de Lady Macbeth de que falava Freud. Não tem cura, é a doença da traição.
Joaquim Nagib Haickel
Deputado estadual – PSB
Ligou-me na última terça-feira um amigo com quem não falava há muito tempo. Ele parecia preocupado. Ligou para me relatar uma conversa que teve com alguém de dentro do Palácio, na qual a pessoa lhe disse que todo mundo, por lá, estava comentando que eu seria o verdadeiro autor de um artigo intitulado A Doença do Governador, publicado sob o nome fictício de Antônio Cliff. Alusão a minha pessoa como o autor do referido artigo já havia sido feita anteriormente, na minha presença e de brincadeira, diga-se de passagem, por alguns amigos, em um vôo entre São Luís e Imperatriz.
Li o referido artigo que foi publicado neste jornal há algumas semanas atrás. Li e reli. Achei uma obra literária de ótima qualidade, e não pretendo aqui analisá-la pelo ponto de vista político, pois acredito já ter deixado bem clara, em várias ocasiões, a minha posição quanto a toda essa crise que assola o nosso Estado. Apesar disso, acho justo e oportuno dizer ao autor, quem quer que seja ele, que analisando as coisas pelo seu ponto de vista, mesmo não concordando in totum, reconheço que ele teve um grande senso de oportunidade e um timing preciso ao abordar a questão.
Quero deixar bem claro, em primeiro lugar, que, se tivesse sido de minha lavra tal material, por achá-lo excelente, bem concebido e bem executado, jamais o publicaria sob pseudônimo. Não daria o credito de algo que achasse tão bom a um cavalo, para usar aqui a terminologia apropriada ao candomblé, seus encostos e incorporações.
Todo mundo que leu o tal artigo concorda pelo menos em uma coisa: que ele é de ótima qualidade. Algumas destas pessoas imaginam que tenha sido eu o seu autor. Devo confessar que chego a ficar lisonjeado e envaidecido com isso, porem fico também duplamente triste. Comigo mesmo, pelo fato de não ter tido eu a idéia nem a competência para escrevê-lo. Depois, pelo fato de algumas pessoas imaginarem, erradamente, que eu usaria um pseudônimo para dizer o que penso, para defender uma idéia. Nunca precisei disso. Digo sempre o que penso e tenho a coragem de fazer isso amparado em meu próprio nome, dando a cara pra bater, se for o caso.
Nos meus artigos, uso e abuso das figuras de linguagem, principalmente das metáforas. De vez, em quando recorro ao artifício da comparação. Sempre que posso, traço um paralelo entre os fatos de nosso dia-a-dia com personagens literários, cinematográficos ou com fatos e figuras históricas. Como ocorreu no caso dos artigos Deu no New York Times, De Quem é a Culpa e Uma Carta de 500 Anos, para citar apenas três. Mas todos estes, apesar de polêmicos, foram escritos e assinados por mim.
Quem me conhece, sabe que sou uma pessoa direta e franca. Acredito que dizer a verdade é bem mais barato, mas acredito que o uso e a prática da verdade não significa o exercício da grosseria ou da deselegância, e isso eu aprendi desde cedo na vida.
O uso de um personagem de Shakespeare como estereótipo não é novo nem na literatura nem na psicanálise, e uma vez que o tal Antônio Cliff se diz pós-doutorando em Psicologia pela conceituada Universidade de Johns Hopkins, pelo menos ele deve ser sabedor disso, já que não soube escrever nem o nome da Universidade de que se diz estudante (É Johns e não John). A única ressalva literária que faço ao artigo é quanto ao fato do autor ter usado um nome que não é apenas fictício, chega a ser inverossímil, parece até sacanagem. Faz-me pensar que ele queria propositalmente menosprezar a nossa inteligência.
Quanto ao conteúdo do texto e aos personagens a que alude, gostaria de dizer ao doutor Antônio que existem outros personagens shakespeareanos que ele poderia agregar a essa história, para melhor exemplificar o momento caótico pelo qual passamos.
Lembro-me de saída do Yago, intriguento e dissimulado, que, visando apenas vantagens próprias, destrói através da calúnia e da difamação, a vida de seu senhor Otelo, o Mouro de Veneza. Tal qual Yago, temos dúzias, de todos os lados. Ou ainda o corcunda e o coxo Ricardo III, que, a certa altura de sua covardia, em meio a uma batalha decisiva, brada que trocaria seu reino por um cavalo. Deste, existem alguns por aí. E finalmente, poderíamos acrescentar a essa lista Catarina, de A Megera Domada (ao lembrar dela, só me vem à mente a fisionomia enlouquecida da Catarina interpretada por Elizabeth Taylor, que neste filme contracena com seu marido, Richard Burton).
Nessa nossa tragicomédia Timbira e bufa, se procurarmos bem, encontraremos figuras perfeitas para todos esses papéis, para cada um dos arquétipos e personagem de Shakespeare. Encontraremos vários Brutus de Júlio César; Goneril, Regane e Cordélia, as três filhas do rei Lear e o próprio rei; o Romeu e a Julieta, apaixonados e suicidas, da obra de mesmo nome. Shylok, o agiota do Mercador de Veneza; Há até o fantasma do pai de Hamlet, príncipe da Dinamarca. E por ai vai.
No final, o que todo mundo vai acabar descobrindo, até mesmo o doutor Antônio Cliff, é que há pelo menos um título de uma das obras do grande dramaturgo inglês que cabe como uma luva para definir tudo isso que estamos vivenciando: Muito barulho por nada.
Quem viver, verá.