Há algum tempo atrás, flagrei minha mulher, às seis da manhã … , bom, deixe que eu termine, ou melhor, que eu comece de novo: minha mulher é artista plástica, e o sossego necessário para o seu trabalho só começa quando o dia, ou à noite acabam, por isso ela dorme muito tarde para o hoje e muito cedo para o amanhã, o que faz com ela acorde sempre na hora do almoço.
Não é piada não, é verdade! Nós tínhamos um papagaio, ou melhor, dois, primeiro um, depois o outro. O primeiro, o Horácio, evadiu-se há alguns anos. Cantava o hino nacional, as musicas das Xuxa, e até cânticos de igreja, chamava as pessoas pelo nome, mas não agüentou o stress de uma casa como a nossa. Masculino lá, só eu e ele, pois são seis mulheres, entre mulher, filhas e empregadas, sem contar a Gertrudes, a tartaruga.
Horácio, certo vez, foi passar um fim de semana na casa de minha mãe, e lá, bateu asas e voou. Resolvi, tempos depois que sozinho eu também não agüentaria e comprei outro papagaio, e o batizei de Rafael. Este era mais jovem, menos letrado, falava pouco, pelo menos no começo. Mais alguns meses depois já era dono da casa.
Pusemos a sua gaiola sem grades onde era a de Horácio, bem próxima ao quarto das empregadas e logicamente ao alcance de sua grandiosa audição estava a TV e o rádio delas.
Rafael aprendeu a falar, a chamar as pessoas pelo nome, aprendeu a dizer bom dia, cumprimento que ele repetia a qualquer hora. Era uma ave asseada, pois Avana, filha mais velha, dava-lhe banho regularmente. Rafael comia até filé (dizer isso me dói na mais profunda alma, pois Ruanda, Moçambique, Namíbia e Etiópia, partes de meu mundo, estão famintas, miseráveis e doentes).
Pois bem, Rafael veio para substituir a lacuna deixada por Horácio, para não deixar que eu só fosse o único ser masculino em minha casa, o que eu gostava muito, pois sendo ele o outro, seria inofensivo a qualquer propósito mais humano.
Certa vez fomos todos viajar e precisávamos deixar nossa tartaruga e o nosso papagaio na casa da mãe de Francisca, moça que minha mulher cria desde garota. Até ai tudo bem, o problema aconteceu na volta, quando ao trazermos Rafael para casa, descobrimos que ele havia aprendido a latir como o cachorro dela e a cacarejar como suas galinhas. Imaginem uma galinha verde ou um cachorro de penas.
Rafael passou a atormentar a todos e para completar, ficou tão traumatizado com as suas férias e a nossa distância que passou a querer a presença de alguém sempre por perto, senão começava a gritar, latir, cacarejar e estrilar as magníficas cordas vocais que a mãe natureza lhe deu.
Como precisava muito dele, resolvi ser seu psicólogo e ficava com ele. Cheguei até a impingir-lhe um gatilho psicológico: fiz com que o som da televisão, aos poucos fosse substituindo a presença humana que tanto requisitava. Porém de tanto me observar, Rafael ia aprendendo comigo. Notou minha compulsão e ansiedade por comida e copiou isso de mim, e sempre que estava só ou chateado se danava para gritar e latir.
De entretenimento, Rafael passou a ser um transtorno. Papagaio, carente, ansioso, obeso, tava querendo me irritar! Falava muito, gritava, não admitia que desligassem o rádio ou a tv. Realmente o nosso papagaio estava muito doente, estava com uma forte crise de identidade. E eu já não sabia se era ele ou eu.
Ninguém agüentava mais o papagaio, nem os vizinhos que eram incomodados com os seus cacarejos e latidos. Ainda bem que na casa da mãe de Francisca não tinha uma seriema ou um tetéu, pois senão estávamos em pior situação.
Rafael gritava: eu corria, conversava com ele, ligava a TV, dava-lhe uma bolacha de água e sal ele parava pelo menos por instantes.
Nossa vida estava um inferno, foi quando flagrei minha mulher escrevendo um belo texto sobre a nossa amada ave de estimação, que na noite anterior não havia a deixado trabalhar nem sequer dormir. Ai está o problema: Ivana, minha mulher, escreveu um texto muito bom sobre Rafael, e sua vida conosco e com ela principalmente. Fiquei chocado com a qualidade do texto, não porque não soubesse que ela fosse capaz, ela o é. Mas imaginava que ela preferisse se expressar em cores e formas.
Passados alguns dias, estávamos sós em casa, eu e Rafael, quando ele começou a gritar. Não pensei duas vezes, liguei o computador, localizei o arquivo com o texto de Ivana sobre Rafael, imprimi, e marchei até ele. Coloquei um banco em frente a sua gaiola e comecei a ler o que Ivana havia escrito sobre ele.
Incrivelmente o papagaio só interrompeu para pedir um pouco de biscoito, no que foi prontamente atendido.
Acabei de ler o texto, liguei a TV, coloquei alguns biscoitos na gaiola e pedi para ele um pouco de paz e sossego.
Dois dias depois, ao acordar, fui até a área de serviço e por não ter ouvido o sinal dele, nem o seu espanar de asas ou seus gritos, fui chamando-o, quando Jesus me disse que, quando ela ia chegando em casa, Rafael estava sobre o parapeito da janela, ela correu para pegá-lo e ele aparentemente atirou-se da janela como se pulasse para o suicídio, mas o instinto foi mais forte e antes de tocar o solo ele bateu as asas até a um pé de fícus próximo, voou até o telhado do prédio vizinho e dali para o mundo.
Nunca mais soubemos do Rafael.