Coisas pra não esquecer
Se vivo fosse meu pai completaria ontem, 19 de dezembro, 76 anos de uma vida que acabou por ser curta em tempo, mas longa em intensidade e realizações.
Nagibão morreu em meio a um desfile de 7 de setembro de 1993, meses antes de completar 60 anos, no auge de sua vida pública, quando era presidente da Assembléia Legislativa do Maranhão.
Alguns anos atrás eu desafiei meu amigo e professor, hoje meu confrade na AML, Sebastião Moreira Duarte para, junto comigo escrever a biografia de meu pai. Ele, é claro, faria a parte mais difícil, a pesquisa, e eu colocaria os floreios, os fatos pitorescos da vida daquele que gostava de ser chamado de “caboclo do vale do Pindaré, acostumado a comer tapiáca e mandubé”.
Meu pai era filho de Elias e Maria Haickel, dois primos que vieram para o Brasil para fugir das privações de um Líbano recém-nascido, mas sob o julgo francês e britânico.
Meus avós vieram de Zahle, como quase todos os libaneses do Maranhão e meu pai só não era um libanês legítimo porque nasceu às portas do Engenho Central da Companhia Progresso Agrícola, às margens do rio “anzol”, Pindaré, em tupi-guarani, então município de São Pedro.
Sebastião começou a fazer a pesquisa, conversou com muitos dos amigos, contemporâneos e até adversários de meu pai, mas chegou num ponto em que empacou. É que Sebastião, mix de xeique mulçumano, rabino judeu, bispo anglicano, acende uma vela para um trabalho, uma lamparina para outro, um petromax para um terceiro e ainda pede uma ajudinha da Cemar para iluminar as importantes publicações que coordena para o Instituto Geia.
Ele faz tanta coisa ao mesmo tempo, que seu último trabalho, que deverá ser realizado com a ajuda do não menos talentoso jornalista Itevaldo Júnior, no qual mostrará a vida de um homem incomum de nossa história contemporânea, o ex-deputado Rubens Pereira, deverá ser concluído antes da biografia de meu pai. Por isso quero aproveitar a oportunidade para sugerir ao mestre Bastião que convoquemos mais dois soldados para essa batalha, o mesmo Itevaldo e o nosso confrade Benedito Buzar, memória viva de seu tempo. Acho que nós quatro daremos conta, a contento, de colocar no papel o que fez Nagib Haickel enquanto por aqui esteve.
Por falar no que fez Nagib Haickel, agora há pouco me lembrei de uma de suas sacadas fenomenais. Estávamos de férias no sítio que tínhamos no então longínquo Angelim, onde hoje é toda aquela imensa área do Residencial Pinheiros.
Para chegarmos lá, nos idos de 1969, era uma verdadeira viagem. Passávamos por riachos paradisíacos onde piabinhas voavam na água cristalina. O cheiro de manga, cajú, goiaba e tangerina, invadia pelas narinas nossas almas, enquanto pelos olhos éramos invadidos pela luz do sol refletida primeiro nas nuvens, depois da chuva fina, e em seguida pelas copas das árvores, que balançavam ao vento matinal. Numa daquelas tardes, meu pai, depois de uma de nossas partidas de futebol, em um campinho feito de areia tirada do rio que tínhamos no sítio, foi tomar banho em um enorme chuveiro que ele mandara fazer especialmente para sentir como se estivesse na chuva.
Ele observou que dona Nazaré estava lavando as panelas usadas no almoço, abaixo do dique que ele construíra para represar o rio e transformá-lo em uma piscina para nosso maior deleite. Ele ficou olhando para ela por uns 30 segundos, imóvel, como quase nunca fazia. De repente ele me gritou: “Pai!”- era eu – “vai lá onde dona Nazaré e pede para ela me emprestar uma de suas panelas, enche de areia bem fininha e limpa e traz aqui pra mim”.
Eu fui feito uma bala, sem saber pra que ele queria aquilo, mas fui. Trabalho feito, eu fiquei olhando para meu pai, observando o que faria. Ele sentou-se no tronco que ele mandara colocar próximo ao chuveiro, para que pudesse se ensaboar mais confortavelmente, pegou a panela cheia de areia e enterrou o sabonete Phêbo que usava dentro dela, fazendo assim o primeiro sabonete com esfoliante da história. Pelo menos da minha história.
Meu pai era assim. Começou a trabalhar aos 13 anos; Inventou entre nós a loja aberta 24 horas por dia, a Meruóca sem porta; pintou todos os postes de energia da cidade com o nome de sua empresa; comprou todos os telefones de uma das expansões da Telma para o bairro do Olho D’água, e todas as garrafas de cerveja e refrigerantes à venda na cidade. Quem quisesse telefones ou cascos de vidro teria que comprar dele; desafiou o poderoso monopólio de cimento de João Santos trazendo da Venezuela um navio carregado dessa mercadoria; foi o primeiro político a reconhecer o poder da radiodifusão, com seu programa A Voz do Vale do Pindaré e o poder do futebol, quando na presidência do Moto Clube levou o Papão do Norte pela primeira vez para o campeonato brasileiro; não pichava as paredes da cidade com propaganda política, pichava o chão, e justificava, “daqui a um mês os pneus dos ônibus e dos carros já apagaram tudo”.
Meu pai era assim e nem daqui a um século sua lembrança será apagada, pois vira e mexe escuto alguém contar uma de suas histórias.