Cirurgia

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A passagem pelo centro cirúrgico de um hospital, que deixa qualquer um temeroso da morte, me fez pensar seriamente, nas últimas semanas, sobre diversas questões que me deram fôlego para o aprofundamento de minhas reflexões.
Após a delicada operação cirúrgica a que me submeti, quando recobrei os sentidos, e como todo mortal que volta da anestesia, pude me sentir com a sensação de um grande alívio. Pude então dizer a mim mesmo: Bem-aventurado aquele que faz uma cirurgia eletiva e não compulsória.
Porque, depois de sair do centro cirúrgico, aquele mundo sombrio de tubos, fios, lâminas e agulhas, e já de volta a um quarto comum do hospital, pude refletir sobre o drama de pacientes vizinhos, submetidos a cirurgias compulsórias e que, em estado grave, também foram obrigados a passar por uma UTI.
Fiquei pensando na crueza do que significa a passagem por uma UTI. Lá, como se sabe, o ambiente é de dor e medo, gemidos e vozes estranhas. Mãos que limpam, lâminas que cortam. Um amontoado de tubos de plástico, máquinas computadorizadas, agulhas na veia, choques elétricos. A propósito disto, acho que poucos pacientes fizeram um retrato tão direto da vida numa UTI como o escritor João Ubaldo Ribeiro, que em julho de 1994 sofreu uma arritmia cardíaca. Numa crônica publicada em O Globo, João Ubaldo definiu seu estado como próximo da “demência completa” entre uma “senhora macilenta e esquelética, vestida, como eu, à la Auschwitz” e um paciente que passava o dia gritando por socorro, chamando uma filha e dizendo “estão querendo me matar!”
João Ubaldo não fala que teve alta da UTI, diz apenas “fui libertado”. Todo mundo sabe que uma UTI é também aquele ambiente em que uma pessoa encara a morte, mesmo que, depois, tenha a felicidade de retornar são e salvo.
Longe do drama vivido por João Ubaldo, pude sentir, entretanto, que a experiência de passar pelo centro cirúrgico de um hospital é um momento pessoal, íntimo e único.
Num centro cirúrgico, todos os pudores da vida em sociedade se esvanecem. Homens e mulheres expõem seus corpos, deixam enfermeiras manuseá-los, limpá-los. Elas o fazem com eficiência e frieza. É comum se dirigir aos pacientes como se eles fossem crianças. A fala das enfermeiras é repleta de diminutivos. “Uma picadinha aqui, tá? Fica bonzinho que não vai doer nada”.
Mesmo nos hospitais mais modernos, além da grande medicina, há lugar para santos e medalhas religiosas junto à cabeceira de alguns leitos. Ao lado de toda a tecnologia que sustenta a vida, também se aceita outro tipo de ajuda. Tanto faz ser em São Paulo ou em São Luís, os parentes e amigos mais crentes levam para dentro dos hospitais retratos de santos e pequenas medalhas religiosas. Esses objetos dão a entender que nem toda a salvação depende daquelas máquinas mirabolantes aperfeiçoadas com o auxílio da informática. Além disso, em todo hospital que se preza a UTI não tem leito 13, o número do azar.
Sorte para mim foi o alívio que senti quando chegou a hora de receber alta e ir embora. Pude dizer, também: Bem-aventurados aqueles que têm condições de ter um tratamento de saúde digno. Infelizmente, o sistema de saúde pública de nosso país tem uma doença crônica. Na maioria das vezes, tal sistema está em frangalhos: atende mal a população, paga mal a seus funcionários, desperdiça verbas e abriga fraudadores.
Empresas e funcionários, diante da falência da saúde pública, se associam para pagar planos privados, com os quais poucos estão satisfeitos. Nunca é demais brigar pela recuperação do sistema público de saúde, que tem a obrigação de atender às necessidades básicas da população, de maneira correta e decente.

2 comentários para "Cirurgia"


  1. Mariana Dias Ferreira

    Só quem já passou por uma situação dessas pode saber o que é isso. Só quem já precisou da saúde pública sabe como se sofre.

  2. Anônimo

    Excelente a crônica …

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