Quem não sabe é como quem não vê

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Faz alguns anos, entrei em um antiquário em São Paulo e depois de passar uma vista nos objetos em exposição, deparei-me com dois quadros colocados lado a lado, sobre um aparador. Eles estavam em molduras bem desgastadas e pareciam meras velharias, mas é disso que eu gosto nos antiquários, de coisas que fizeram parte das vidas das pessoas, que carregam consigo suas boas energias. Objetos que foram amados e que faziam bem para quem os possuía.

Um daqueles quadros, de certa maneira, falou comigo. Era como se ele dissesse baixinho, “Ei!… Me leva contigo”. É que algumas peças realmente falam comigo. Normalmente quando isso acontece, e eu po$$o, eu as levo.

Observei melhor o quadro e achei que ele me seguia com os olhos. Dei outro passeio pelo salão, voltei aos quadros e disse pra mim mesmo que aquela era a figura de São Pedro, pelo menos era assim que eu pensava que ele pudesse ter sido.

Imaginei que bem que aquele quadro poderia ter sido pintado por um grande artista, Michelangelo quem sabe, comprado por uma daquelas riquíssimas famílias paulistanas. Uma daquelas que na falência, seus herdeiros despreparados, venderam tudo que tinham e, por desconhecerem o valor de tal preciosidade, ela estava ali, desprezada, jogada bem em minha frente. O certo é que aquele pequeno quadro falara comigo, e aquela voz dentro de mim não poderia ser calada.

O outro quadro não me chamou tanta atenção. Enquanto o São Pedro era uma pintura a óleo, a outra era uma aguada, com finos traços de lápis delineando a figura de uma mulher nua, segurando um enorme cisne pelo pescoço. Achei este mais curioso que bonito, mas foi só.

Eu havia me separado e resolvido que jamais viveria junto permanentemente com outra mulher. Eu estava construindo uma casa que queria que fosse um lugar onde eu tivesse tudo que eu gostasse, que me fizesse feliz, e quadros, esculturas, objetos de arte ou do cotidiano são algumas das coisas que mais gosto. Era uma casa onde eu pudesse viver bem e sozinho, onde iria apenas pensar, planejar, escrever, cozinhar e de vez em quando convidar uma bela mulher para passar algumas horas, ou quem sabe até mesmo alguns dias agradáveis.

A casa deveria ser como a casa de Neruda, na Isla Negra. Um museu vivo, um local que por si só falasse de seu dono, de como ele era, do que e como pensava e sentia. Um verdadeiro santuário que guardasse tudo aquilo que eu gostasse e que me fizesse feliz.

Pois bem, aquele quadro de São Pedro que eu resolvi que fora pintado por Michelangelo, se bem que poderia ter sido por Rafael ou mesmo Leonardo, iria morar comigo em minha casa-museu.

Perguntei quanto custava para a simpática senhora de ascendência espanhola que me atendia e ela disse um valor salgado para uma peça aparentemente sem um valor artístico maior. Eu regateei, se bem que eu não sou bom nisso. Ela ficou intransigente e não sei de onde me veio a ideia de dizer que só pagaria aquela quantia “exorbitante” se aquele outro quadro viesse junto. A senhora olhou pra mim como quem diz “peguei um besta”, fez uma cara pensativa e concordou.

Ao chegar em São Luís, levei os dois quadros para meu amigo Régis limpar e colocar novas molduras.

Quando estava terminando a casa, coloquei o São Pedro numa parede estreita mas, central da sala e a mulher nua com o cisne, coloquei numa parede lateral, na entrada do meu banheiro.

O tempo se passou, eu encontrei uma mulher que mudou o rumo da vida que eu havia planejado pra mim e, apaixonado, resolvi desmontar a casa, pois ela não fazia mais nenhum sentido. Não desejava mais ser um eremita, nem morar em um museu, mas não deixei de amar meus objetos, meus quadros e minhas esculturas. Levei todos comigo para minha nova casa.

Um dia desses arrumando minhas coisas, tive a curiosidade de descobrir quem havia pintado aqueles quadros. Nunca havia me preocupado com isso antes. Vi que no São Pedro está escrito V. Caruso, que imagino seja Vicente Caruso, importante pintor paulista. Na Mulher nua com cisne, está escrito Ant Bourdelle, que imagino seja a assinatura de Antoine Bourdelle, um dos mais importantes artistas plásticos franceses, sucessor de Rodin como mestre em escultura da Escola de Belas Artes de Paris. Observando bem o papel e a tinta, desgastados pelo tempo, acalento a esperança de ser esta uma gravura da obra Leda, Zeus e o cisne de Bourdelle, não pelo valor venal da obra, que nem deve ser tão grande, mas pelo fato dela ter sido feita pelo professor de meu ídolo, Celso Antônio.

Ao saber disso lembrei de meu pai, que não apreciava muito, nem entendia de arte, mas que era sábio quando dizia: “Quem não sabe é como quem não vê”.

1 comentário para "Quem não sabe é como quem não vê"


  1. Leandro

    Essa matéria me fez lembrar de um belíssimo óleo sobre duratex de Ambrósio Amorim que encontrei há uns 10 anos no lixo. Retirei a moldura velha e o tenho guardado até hoje esperando a casa perfeita para expô-lo em alguma parede bem bonita.

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