Durante o carnaval, minha esposa, Jacira, leu para mim, uma postagem em uma rede social que relacionava uma série de expressões como formas sutis, subjetivas e indiretas de preconceito.
Muitas eu conhecia e não as ligava a preconceito, como denegrir. Para mim denegrir era apenas um verbo que significava macular, difamar, falar mal de alguém. Algumas eu conhecia e até ligava a preconceito, mas num sentido meramente simbólico e até de certa forma positivo, como judiar, expressão que significa maltratar, mas pensava que essa expressão fosse usada no sentido de nos fazer lembrar como foram perseguidos os judeus, não para induzir a crueldade para com eles.
Até o dia que minha mulher leu para mim a tal postagem, acreditava que uso da palavra negra associada as palavras magia, lista, mercado e coisa, eram meras associações deste substantivo ou adjetivo feminino como sinônimo de oculta, perigosa, ilegal e difícil! Em minha cabeça essas expressões jamais foram uma tentativa de marginalizar uma raça, diferentemente de coisa de preto, mulata, ou cabelo de nego, essas sim, claramente eivadas de preconceito.
Mas entre todas aquelas expressões, uma me deixou perplexo pelo fato de não conhecer o motivo histórico de tal termo ser usado, ou seja por total falta de conhecimento, de cultura mesmo, de minha parte, como acredito que ocorra neste caso específico com a maioria das pessoas. Soube naquela ocasião que o nome criado-mudo, atribuído ao móvel que colocamos ao lado das camas, é proveniente de um hábito escravocrata, de quando os “senhores” colocavam seus escravos postados, durante toda a noite, ao lado de suas camas segurando uma bilha com água e um copo. Eu jamais poderia imaginar que alguém pudesse ter uma ideia tão absurda e estapafúrdia como essa. Muito mais prático seria colocar-se um banquinho para esse fim!
Pois bem! Ao saber que o outro nome dado à mesinha de cabeceira fazia referência a uma atitude repugnante do tempo da escravidão, fiquei chateado comigo mesmo, por desconhecer tal fato. Além disso fiquei indignado por ser considerado preconceituoso por usar essa expressão, pois, uma vez que não sabia que ela tinha essa conotação, não poderia ser acusado por tal atitude, mas de qualquer modo, daquele dia em diante, só me referirei ao móvel colocado ao lado das camas como mesinha de cabeceira, a magia é oculta, a lista é perigosa, o mercado é ilegal e a coisa tá difícil!
Outro assunto foi tema de nossas conversas durante o carnaval. A existência de um tal do Lugar de Fala, que em minha modesta opinião é uma invenção que tenta limitar a liberdade de expressão de uns em relação a pretensos direitos de outros. É como se algumas pessoas, resolvessem que há uma hierarquia entre alguns direitos fundamentais do cidadão, estabelecidos no artigo quinto da Constituição brasileira, que trata de nossos direitos e garantias individuais e fundamentais. Falo desse assunto usando o mesmo argumento das pessoas que inventaram e defendem esse tal Lugar de Fala, pois fui membro da comissão de parlamentares que durante dois anos trabalhou na confecção desta quadra de nossa Constituição.
Algumas pessoas estabeleceram que alguns direitos, de certos cidadãos, são mais importantes que outros direitos de outros cidadãos, o que é um contrassenso, além de tornar o exercício desses tais direitos subordinados ao uso social deles, transformando-os em poderosos instrumentos de poder de uns cidadãos iguais, contra outros que deveriam também ser igualmente cidadãos.
A tese do Lugar de Fala estabelece que só pode falar ou se manifestar sobre um determinado assunto quem o tenha vivenciado. Nenhum homem pode falar sobre assuntos de mulheres, como por exemplo, menstruação, gravidez, cabelos no sovaco… Nenhum homem pode se dizer feminista! Um teólogo protestante, não pode comentar sobre uma religião de matriz africana… Um filósofo, sociólogo, antropólogo ou psicólogo heterossexual não pode tecer comentário, nem aqueles que sejam aceitos ou favoráveis, sobres assuntos homossexuais, por não ter legitimidade.
Estou vendo a hora alguns tentarem impedir que um cidadão reclame da forma como outros desestabilizaram, corromperam e destruíram a sociedade, que pertence igualmente a todos. Imagine se tentarem impedir que o torcedor de determinado time reclame da chatice de outro, ou um pai de bem educar um filho.
Acredito que eu tenha Lugar de Fala, enquanto pessoa, cidadão cumpridor de minhas obrigações e respeitador das leis, ao dizer que este mundo em que vivemos está muito chato, que tenho saudade do tempo em que lutávamos pela liberdade que não tínhamos, e hoje que a temos, a limitamos de tal forma que acabamos por perdê-la para nós mesmos, o que é um grande absurdo, uma imensa tragédia.