Fui procurado tempos atrás por uma simpática produtora cinematográfica que estava fazendo um documentário sobre a líder comunista Maria José Aragão. Alguém disse a ela que eu era amigo de Maria e possuía um grande acervo imagético sobre o Maranhão e seus mais importantes personagens. Imediatamente coloquei à disposição da produção todo o material pertencente ao Museu da Memória Audiovisual da Fundação Nagib Haickel.
Ela quis saber como conheci Maria Aragão, como ela era. Disse-lhe que conheci Maria no começo dos 80. Maria já era um ícone de nossa sociedade. Mulher, médica, comunista. Corajosa, disposta, aguerrida. Camarada para alguns, cúmplice para outros, mãe para alguns outros, avó para os mais jovens, mas sempre uma pessoa capaz de conquistar um amigo com seu sorriso largo, de olhinhos apertados e sua gargalhada solta.
Fui apresentado a ela por amigos comuns. Aldionor Salgado, Cordeiro Filho e Sergio Braga. Nessa ordem, os três me levaram até ela dizendo que eu precisava aumentar o meu currículo e conhecer a mulher mais importante do Maranhão.
Ao ser apresentado por Aldionor, ela brincou referindo-se ao meu pai, dizendo que eu era visivelmente um melhoramento genético do “caboclo do Pindaré”, a mesma terra onde ela nasceu. Quando Cordeiro me apresentou a ela, naquilo que seria a segunda vez a apertar-lhe a mão, desta vez, mais a vontade ela disse a Cordeiro que já conhecia “esse pão do Pindaré”. Quando Sergio Braga, todo formal e gozador, disse a ela que iria lhe apresentar um jovem “direitista” que precisava ser resgatado para as lutas populares e o melhor caminho para fazer isso seria pelas mãos de uma mulher inteligente e charmosa, ela retrucou dizendo estar à disposição e que se fosse apresentada a mim mais uma vez, ia acreditar que era coisa do destino e iria realmente me seduzir. A gargalhada foi geral.
Continuei me encontrando com Maria pela cidade e pela vida. Quem a conheceu sabe o que ela significou, não só pela sua luta social e democrática, mas pelo seu jeito de ser. Não falo isso porque é bonito falar ou por ser politicamente correto. Maria Aragão é uma das pessoas mais incríveis que eu conheci e não estou falando da ativista, que é extraordinária, falo da pessoa.
Em 1983, montei uma gráfica com o artista gráfico Paulinho Coelho, em cima do depósito de cimento de meu pai, no Desterro. Lá passou a ser o ponto de encontro do pessoal da poesia, da política, da cerveja, das “minas”…
A Gráfica Guarnicê era na verdade mais frequentada pelos meus amigos da esquerda que pelos governistas, que nunca foram por lá.
O padre Marcus Passerine, da paróquia de São João fazia conosco seus impressos e jornais. Até meu colega, deputado Luiz Pedro, imprimia seus panfletos lá.
Uma vez Paulinho entrou pálido em minha sala dizendo que tínhamos um problema. Luiz tinha trazido um jornal para rodarmos e nele havia uma fotografia minha e outra de meu pai. Era alguma coisa contra o governo, ele relacionava os políticos que segundo ótica editorial, eram contra o povo. Não pensei duas vezes. Mandei pegar o trabalho. “Ora bolas Paulinho! Se nós não ficarmos com os dólares albaneses desses comunistas eles vão levá-los para outra gráfica, meu filho! Isso é que é a tal economia de mercado contra a qual eles tanto lutam”. Infelizmente ainda hoje alguns poucos comunistas continuam com essas bobagens.
Foi nesse clima que em uma manhã chuvosa de janeiro, subiu as escadas de nossa “célula”, sede da Revista Guarnicê, ninguém menos que Maria Aragão, acompanhada pelo vereador Aldionor Salgado e Mary Ferreira. Ela queria imprimir folders, panfletos e blocos de rifa, onde seria sorteada uma coleção completa dos livros de Florestan Fernandes, tudo para levantar dinheiro para os eventos do dia internacional da mulher.
Ao chegar ela foi logo dizendo que o preço tinha que ser “camarada”, coisa de “companheiro”. Ela era permanentemente bem humorada.
Chamei Paulinho num canto e perguntei se havia sobrado papel da última edição da revista, ele respondeu que sim, então resolvi não cobrar nada pelo serviço.
O dito foi feito. Maria voltou para buscar o material poucos dias depois e ainda me fez comprar dois blocos completos das rifas. Na ocasião ela disse que se eu tivesse sorte ganharia, e assim poderia aprender nos livros de Florestan coisas importantes para meu trabalho político e para minha vida como cidadão. Lembro que ela anotou em uma agenda os números dos blocos que eu comprei.
Nos idos de março Maria me entra na gráfica, acompanhada de um jovem musculoso carregando uma caixa de papelão. Disse que vinha entregar o prêmio da rifa, os livros de FF.
Nunca soube ao certo se ganhei mesmo aquela rifa ou se aquela coleção era a forma de Maria agradecer pela ajuda. Na hora da entrega ela disse que precisava me resgatar da direita e que Florestan era um bom caminho para isso.
Anos mais tarde, em Brasília, já como constituinte, tive a honra de ser colega do grande Florestan Fernandes. Fui apresentado a ele por meu querido amigo Artur da Távola. Em certo momento de nossa primeira conversa ele se vira pra mim e diz: “A Maria me falou de você. Espero que os livros tenham servido para alguma coisa”.
Dali por diante Florestan perguntava por Maria toda vez que me encontrava. Eu, de sacanagem com ela, dizia quando a encontrava, que seu namorado, FF, havia lhe mandado um beijo. Ela ria com os olhinhos apertados.