Em toda história tem que haver sempre aquele que chama pra si a responsabilidade de ser “inconveniente” e dizer a verdade. É muito necessário aquele personagem que tentar fazer ver melhor quem precisa enxergar uma determinada situação. Essa ação, no popular, costuma se chamar de “colocar o guiso no pescoço do gato”, só que muitas vezes o felino em questão não é um bichano caseiro, um gatinho doméstico, desses que andam se enroscado nas nossas pernas por debaixo das mesas. Em muitos casos trata-se de um tigre, um leão, ou um leopardo, um felino de grande coturno, feroz e com garras afiadas, acostumado a de uma bocada só eliminar uma zebra, um antílope ou uma gazela, o que tenho certeza não é o meu caso. Acredito que eu esteja mais para um orangotango, macaco velho, gordo e meio careca, com cara de pensador, mas sem a força do gorila, sem a agilidade do macaco-aranha, sem a simpatia do chipanzé, mas com a inconveniência e algumas outras características dos macacos-prego.
Nem vou me ater à questão da verdade, até porque, o que é mesmo verdade? Qual é a verdade? Não falo de uma verdade específica. Refiro-me à verdade em lato senso. Falo da verdade filosófica, dela enquanto luz, como descortinamento, como argumentação. A verdade dialética.
A função de dizer a verdade para alguém que não a conhece ou não quer vê-la é quase sempre mal compreendida, principalmente tratando-se de algo constrangedor, algo que vá contra os interesses das pessoas.
Pior é quando essas verdades precisam ser ditas a gente poderosa, em qualquer dos sentidos que a palavra poder possa ser referenciada. Essas são pessoas que não estão acostumadas a dialogar. Pessoas que se acostumaram a ser seguidas sem contestação, que pensam estarem predestinadas a fazer coisas para as quais nem sempre tem capacidade.
Acaba levando muita bordoada quem se propuser a dizer o que precisa ser dito para que se estabeleça a argumentação necessária para o exercício da dialética. Para tentar fazer algumas pessoas verem o que precisa ser visto. Ver o que alguns são incapazes de enxergar. Uns pela extrema proximidade da cena, outros por serem protagonistas de um enredo que eles mesmos escreveram, por estarem comprometidos com a história, seus personagens e suas atitudes.
Há quem sofra de um simples defeito na visão, outros pela falta de iluminação suficiente, outros ainda por total cegueira mesmo.
Cegueira proveniente das mais diversas causas. Causada pelo poder que tudo pode ou pelo ouro reluzente que cega. Decorrente do sentimento de culpa ou de sentimentos subalternos, como a raiva, a vaidade, a mágoa, a inveja. Proveniente da inexperiência. Cegueira estimulada pelo bajulador ou pelo vigarista que nos envolve de tal modo, desenhando um cenário tão maravilhoso, usando artifícios tão espetaculares, atingindo-nos em pontos tão sensíveis que até mesmo os mais espertos e experientes muitas vezes são colocados em um torvelinho incapaz de ser desenrolado a tempo de nos safarmos de uma situação desastrosa.
É bom que se ressalte que o que digo aqui não serve apenas para os poderosos. O mesmo se aplica ao povo em geral.
Dizer a verdade a estes é tão ou mais difícil que dizê-la aqueles, pois a massa é disforme, nela há muitas facções, correntes de pensamento, religiões, paixões. Em meio a turba há muitas falsas verdades que precisam ser preservadas sob pena de quem a domina perder o frágil controle que tem sobre ela.
A massa não quer saber da verdade, ela quer é uma história que case com seus anseios, suas vontades, com aquilo que precisam, com aquilo que seus líderes a convença de que é o melhor.
Pois bem, já estou quase no fim do meu espaço nesse jornal e ainda não disse objetivamente nada de concreto, ainda não enfiei o dedo na ferida de ninguém especificamente, então vejamos dois exemplos, a propósito das eleições que se aproximam:
Para que lançar a candidatura de uma pessoa ao cargo de prefeito, sabendo de antemão que, mesmo sendo essa pessoa uma ótima criatura, suas chances de vitória seriam reduzidíssimas. Que sua derrota poderia ser infinitamente mais danosa do que os benefícios políticos e eleitorais que poderiam vir na possibilidade de uma improvável vitória?
No caso aludido, até em se ganhando se perderia. O custo-benefício de uma disputa dessa natureza se constata efetivamente pela contabilidade da qualidade e não da quantidade dos erros e dos acertos.
Ainda bem que em alguns casos as luzes são acesas a tempo de alumiar o caminho. O que nem sempre acontece, e esse é um caso exemplar, é o fato de que haverá pouca esperança de um bom futuro para aquela combalida população.
Caso semelhante, é fazer de tudo para eleger-se um representante legislativo que se sabe, será ausente, que não se manifestará, que quando tentar fazê-lo será desastroso, que será sempre um zero à esquerda.
O regime republicano e o estado democrático de direito por si só de nada adiantam se nós não tivermos o discernimento de fazer o que for melhor e não apenas o que é conveniente.