Minha mãe reinventou o almoço em família. É! Na nossa, assim como acredito que em todas, esse evento acontece aos domingos e é regado, variando de um lugar para o outro, pelos sempre maravilhosos pratos especiais da vovó ou da nona, conforme a etnia e o sotaque.
Mas voltemos à minha mãe, avó de Laila, Nagib Neto e Pilar e de mais duas dúzias de netos que não são filhos de seus filhos legítimos, mas de filhos que se deram para ela, de presente, sem que tivessem que deixar de serem filhos de suas próprias mães. Algumas mães têm essa capacidade de irem acumulando filhos postiços pela vida afora, e a minha é uma dessas.
Pois bem, acontece que a minha mãe, Dona Clarice Pinto Haickel, estabeleceu que além do almoço de domingo, às vezes tipicamente árabe, comida que ela aprendeu a fazer com minha avó, mãe de meu pai, às vezes tipicamente maranhense, cuxá, torta de camarão, peixe pedra frito, carurú, carne de porco assada ou ainda, assessorada por mãe Teté que faz carne de grelha, assada no fogareiro, servida com um arrozinho branco quentinho, passado na manteiga Real, ou ainda uma suculenta feijoada de mulata gorda, com legumes, verduras, toicinho, linguiça e até com banana, milho, caju, ou sua tradicional macarronada com carne moída, frango ao forno e galinha ao molho pardo, ou o velho e rico arroz de toicinho, acompanhado de sua maravilhosa salada de camarão seco e o tradicional molho d’água, espécie de acompanhamento inventado por meu avô, pai de minha mãe, destinado a saciar a fome de sua família, grande e não abastada, complementando a refeição, feito à base de água fria, cebola, alho, limão, uma ou outra folhagem verde, daquelas usadas para temperar peixe, uma pitadinha de sal e pimenta murici, ingrediente indispensável para atrair o freguês a comer algo parecido com nada e ainda assim se sentir satisfeito e refestelado. Comida de pobre mesmo.
Não estou fazendo rodeios, é que preciso desenhar esse cenário todo para poder chegar onde desejo, o novo dia do almoço familiar Pinto-Haickel. Dona Clarice que arrumou uma função melhor que ser nossa mãe ou presidente da Fundação Nagib Haickel, agora só quer ser é avó de Nagib Neto, pois Pilar está morando com a mãe dela em Paragominas e Laila, agora com vinte anos, namorando, fazendo faculdade, passa pouco tempo em casa. Nagib Neto, que é um gigante de cento e noventa centímetros de altura, oitenta e cinco centímetros de largura e dezesseis anos de idade, é um ser que visto de longe já é imenso e de perto só não é assustador por causa de seu sorriso infantil e doce. Ele resolveu que vai comer todo o jerimum e toda a vinagreira do extraordinário cozidão maranhense que minha irmã de criação Litiane, sob a supervisão de mamãe, faz agora todas as sextas-feiras, o tal novo dia de almoço familiar.
A minha velha é muito esperta. Ela inventou esse outro dia para almoçarmos em sua casa, para poder fazer com que meu indisciplinado irmão Nagib coma direito, pois se depender dele, passa o dia todo só no cafezinho, além de aproveitar para ter os homens de sua vida aos seus pés.
Numa dessas sextas-feiras de almoço familiar, cujo prato era um daqueles imensos cozidões, presentes à mesa, dona Clarice na cabeceira, ladeada por mim e por meu irmão, que tinha ao seu lado Nagib Neto, que por sua vez tinha a sua frente, mãe Tetê e do seu outro lado mãe Loló, conversávamos sobre as coisas do dia a dia. De repente eu suspirei fundo e disse a eles uma coisa que queria ter dito há muito tempo: “Eu sou muito feliz” e continuei depois dos améns das mães, da aleluia do meu irmão e da cara de espanto de meu sobrinho gigante. “Sou muito feliz porque tenho uma família maravilhosa, mesmo que minha mãe insista em colocar apenas três quilos de jerimum no cozido, causando briga entre mim e esse mastodonte do Nagib Neto; sou feliz, porque tenho dito para todos que não sou mais candidato a deputado e de todos a quem já disse isso, só ouvi palavras de apoio, mesmo que às vezes discordantes de minha decisão; sou feliz por que amo e sou amado por uma mulher sensacional; sou feliz porque me sinto realizado em minha vida profissional, em todos os âmbitos e aspectos; sou tão feliz, que até quando as coisas não acontecem do jeito que eu queria que acontecessem, acontecem de um jeito melhor; sou feliz porque mesmo sendo agnóstico, sinto que meu Deus fala comigo das formas mais variáveis possíveis, sem precisar de intermediários, sem precisar de religare; sou feliz…” e continuei por um bom tempo enumerando os motivos de minha felicidade, quando cheguei a uma comprovação que havia tido naquela manhã, uma certeza de felicidade, em que pese ser uma certeza triste e pesarosa, pois me foi dada em um depoimento choroso, de uma pessoa que estava em um velório de um de meus grandes amigos, colega do Dom Bosco e correligionário político do município de São Domingos do Maranhão, Francisco Jair Sousa Andrade, que faleceu pouco antes de completar 52 anos, vítima de derrame cerebral.
Uma pessoa veio falar comigo e disse que ele, Jair, gostava muito de mim. Gostava tanto que se alguém dissesse que eu era feio ou mesmo gordo, duas coisas que eu realmente sou, ele partia para cima dessa pessoa, tentando mostrar as qualidades que ele achava que eu tinha.
Naquela hora comprovei que sou realmente muito feliz, pois tenho amigos verdadeiros, pessoas que estão comigo por carinho, amizade, respeito, companheirismo… Amor mesmo.
A absurda e prematura morte de Jair, de certa forma quebrou as minhas pernas, mas me fez ter certeza que a fragilidade de nossas vidas deve ser exercida de maneira liberta, simples, despojada, para que no final possa se chegar à conclusão que eu cheguei ao ver todas aquelas pessoas no velório. Como disse Fernando Pessoa, “Tudo vale a pena se a vida não é pequena” e a vida de Jair Andrade, mesmo simples, pacata, modesta, valeu muito a pena. Tenho que seguir o seu exemplo.
Depois de dizer isso, em meio ao almoço familiar das sextas-feiras, minha mãe que me acha um rebelde religioso, e eu sou mesmo, deve ter acreditado que suas orações foram ouvidas e eu encontrei o bom caminho.
Quanto a mim, tive a certeza de que Deus realmente escreve palavras corretas por tortas linhas, basta apenas que saibamos lê-las e interpretá-las.