Um Pedaço de Ponte – Parte XII

As bonecas

O pai morreu cedo.  Não muitos dias depois de ser pai.

Morreu de morte matada, e disso, por aquelas bandas havia fartura.

A mãe o criou no rigor das leis de nosso Senhor.  Do nosso Senhor e suas também.

Maria, a mãe, queria menina – “Nossa Senhora das Graças há de me dar uma filha, que eu a ela darei”.  Menino veio.  Francisco, o pai, falecido na ponta da peixeira de Setembrino Fulote, queria menino – “macho como o pai”.

Francimar, que era menino, cresceu menina: vestido, cachos e bonecas.  Como tal, era tido por todos.

Francimar, crescia, e Maria alimentava, dia a dia, a ilusão de que seu filho era sua filha.  “Por Nossa Senhora das Graças!,”

Para afirmara idéia de ser mulher na cabecinha da criança, Maria tomou precauções: nunca o perdeu de vista, o fez totalmente dependente de si, não o criou na companhia de vizinhos, adultos ou crianças, isolando-o do mundo e até, de certa forma, dela mesma.  Além disso, incutia-lhe a idéia de ser mulher motivando-o pelo prazer de vê-Ia brincar com bonecas, cozinhar, arrumar casa.  Afazeres femininos…

Excelente artesã, Maria fazia-lhe bonecas de vassouras velhas, de palha, de trapos, até de renda de bilros, de lata, de arbustos secos e de madeira.  Maria fez da vida de seu filho a sua própria.  A vida que ela não teve, a infância que ela não pôde ter.

Certo dia, Maria comprou uma dessas bonecas de plástico, dessas que desarticulam pernas, braços e cabeça.  Francimar gostou muito.  Podia esquartejar cabeça, tronco e membros ou montar como bem quisesse: a cabeça, na perna esquerda.  No braço direito, uma perna.

Uma coisa chamou a atenção de Francimar: não foram os cabelos da boneca que a mãe achava parecida com ela – “é você. Vamos chamá-la de Francimar” Não foram os olhos, ou os braços, foi algo que havia nele e não havia na boneca, debaixo da sainha de chita, feita pela mãe.

Francimar ficou confuso.  Ele era mulher, a boneca era mulher.  Mas eram diferentes.  Por quê?  Será que a mãe é de outro tipo também?  Nunca havia visto sua mãe sem roupa.

Ao completar 15, Francimar iria ser entregue a Nossa Senhora das Graças.  E foi.

– Dizem que foi castigo.. .

Um dia de outubro, depois de semanas de sumiço, Maria foi encontrada em sua casa no meio de mil pedaços de bonecas.  Braços, pernas e cabeças.  Bonecas de trapos, vassouras, palhas, madeira, arbustos, rendas, latas e carne.

Em meio aos pedaços de bonecas e de Maria, encontraram um par de testículos e um pênis.

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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