Um Pedaço de Ponte – Parte X

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Dando continuidade ao texto “Um Pedaço de Ponte” leia a seguir:

Clara cor-de-rosa

Eu a via constantemente, ali, sentada naquele banco, sempre só, sempre com o mesmo vestido cor-de-rosa, o olhar vago, distante, perdido, de quem tem algo a dizer, mas não sabe como.  Todos os dias, após minha jornada de trabalho, pegando e contando dinheiro dos outros, tinha que passar por aquele banco, situado a alguns passos da sorveteria do Hotel Central, onde entrava também diariamente para tomar o meu sorvete de ameixa.  E lá estava ela, com seus olhos tristes e seu vestido cor-de-rosa, todos os dias, semanas a fio.

Depois voltava para casa, onde mergulhava de novo na minha vidinha de trabalho e televisão, cujo motivo se interrompia nos fins de semana com um bate-bola na praia ou uma cervejinha com os amigos.

De certo modo, porém, a presença da menina vestida de rosa quebrava a mesmice do meu cotidiano. Ao sair do trabalho, já não era no sorvete de ameixa que eu pensava, era nela. Que iria vê-Ia outra vez, encolhida e só, no seu banco de rua.  Depois que passava, sem ao menos vírar-lhe o rosto, a constância daquele apelo que sentia na nuca como se estivesse a chamar-me sem os psius e eis que me acostumara a ouvir das garotas sentadas na mureta da praça. No fundo, eu sabia que não era um chamado, era apelo. Mas eu continuava o caminho de casa, telefonando para Lígia, apenas para dar sinal de vida e seguindo o meu roteiro de programa – “Chico Anísio Show”, “Casa do Terror” – até dormir no sofá.

Em um fim de tarde, o vento soprando forte do lado do mar, a mesma multidão de caixeiros viajantes sentada à fresca, em frente ao Hotel Central, falei afinal com ela.

– Todo dia você está aqui, assim parada, sempre vestida de rosa.  Ela apenas levantou a cabeça como se fosse dizer-me algo, mas logo voltou a baixá-la acompanhando com os olhos os riscos imaginários que fazia na calçada com a ponta dos sapatinhos.

Só então reparei que eram sapatilhas de dança, que mal cobriam os pés miúdos e terminavam graciosamente num trançado de fitas um pouco acima dos tornozelos.  As pernas eram firmes e bem feitas, marcadas até as coxas pela roupa leve que vestia, por aquela generosa aragem que corria do mar.

– Como é teu nome?

– Clara.

Mais duas semanas transcorreram assim, sem que nada mudasse, nem no meu, nem no comportamento dela.  Apenas agora, ao passar, acenava-lhe com a cabeça, e ela me respondia com um sorriso mais triste que sua solidão e seu silêncio.

– Vamos tomar um sorvete, Clara?

Ela se levantou tão prontamente que me espantou, como se aquele convite fosse um bem longamente esperado, algo que houvesse perdido a esperança de receber.

– Vamos!

Eu lhe notara as pernas, mas ainda não havia percebido como era bonita, um rosto de criança numa disposição de mulher.

– Chocolate, ameixa, baunilha, maracujá, abacaxi, limão, tamarindo, coco, cupuaçú, bacuri, creme, nata!  Que que você quer?

Quando nos despedimos, sabia que faltava alguma coisa.  Entre nós, um ar pesado de desapontamento, de festa que termina antes de começar.  Bem o sabia, mas era segunda-feira, e eu não queria perder “Tela Quente”.

Na terça, amanheci com febre e fortes dores de cabeça. Só fui trabalhar na quinta.

–    Clara, como você está abatida!

–    Estive doente.

–    Eu também.

–    Eu sei, dores de cabeça, febre alta, calafrios.

–    Como você sabe?

–    Eu não sei, eu sinto.

E outro adeus sem jeito, outro adeus desnecessário e doído, que nenhum dos dois seria capaz de explicar o por quê.

Hoje será diferente Clara.  Vamos jantar fora.

Amei Clara como jamais amei mulher alguma.  Com fogo e todo o desejo do mundo.  Como lembrar aquelas horas?  Depois do amor, o nada.  O que resta é um emaranhado de imagens e lembranças absurdas, aquela confusão de olhos e de dedos, de cabelos e de seios, de coxas e de costas, de pés e de bocas. Mas sinto, ainda agora, tanto tempo já passado, que explorei cada pedaço de seu corpo, cada momento vivido, cada instante exaltado e em seguida, a recomposição do repouso, que se transfigura em enternecimento e entrega total. Conheci então, Clara sem tristeza, uma Clara exultante de tão mulher, uma Clara companheira, Clara eterna, na solidariedade do prazer.

Não lhe perguntei onde morava, nem fiquei sabendo seu nome completo.  Deixei-a no mesmo lugar em que a encontrara.  Só, no seu banco, vestida de rosa.

Não tive sossego no fim de semana.  Ela não apareceu na praça. Segunda-feira, mal pude esperar que o expediente terminasse para correr ao seu banco e vê-Ia de novo.  No entanto, Clara não estava lá. Terça-feira, fui outra vez esperá-la.  Sentei-me no banco. Eu estava só, fazendo sem perceber, riscos imaginários no chão com a ponta do meu sapato. Às nove horas fui para casa.  Deixei há muito tempo de ligar para Lígia.  Não havia mais televisão.  Os meus fins de tarde se tornaram um tormento, sem que nada pudesse preencher o vazio que se cavara em meu peito.  O banco de Clara era, agora, só meu, até que o desgosto e o cansaço me levassem de volta para casa.

Três semanas se escoaram na minha amargura.  Clara havia desaparecido por completo.  Aos poucos, eu me fui acostumando àquela solidão cor-de-rosa, absorvido no meu trabalho, cada vez mais apegado à televisão.  Uma tarde, passei distraído pelo banco direto para a sorveteria.  Lá encontrei o Ribamar que, excitado, me agitava um jornal nas mãos:

– Olha aqui!  Encontraram aquela menina que havia fugido da casa do pai, nosso colega da agência de Belém.

O que olhei ao tomar o jornal nas mãos me fez desabar na cadeira. O suor frio logo porejou na testa, um tremor de não agüentar pelo corpo todo, enquanto braços e pernas me fugiam inteiramente ao controle.  Quis falar, mas não consegui, a cabeça rodando, como se houvesse caído bem no meio de um terrível redemoinho. Lá estava ela, talvez numa última fotografia, os mesmos olhos tristes, possivelmente o mesmo vestido cor-de-rosa. Não podia ler direito, porém uma ou outra frase me chegavam à alma.  “Encontrado nas matas do Anjo da Guarda o corpo da menor C.M.L., que desaparecera da casa dos pais, há seis meses, em Belém. Os legistas acreditam que foi homicídio. Pelo adiantado estado de putrefação, o crime deve ter ocorrido há dois meses”.

Hoje é dia de assistir “Louco Amor” e “Quarta Nobre”. Meu Deus, como era mesmo o telefone da Lígia?  Não, amanhã tenho que estar cedo no trabalho.  Depois, tomar meu sorvetinho de ameixa e me recolher a esta vidinha besta.

Clara?  Perguntei à moça de vestido cor-de-rosa, sentada na mureta da Praça Benedito Leite.

7 comentários para "Um Pedaço de Ponte – Parte X"


  1. Clara

    Olá Joaquim,

    Finalmente você postou em seu blog o conto “Clara cor-de-rosa” de seu livro A Ponte. Lembro-me do lançamento desse livro. No mesmo dia eu adquiri um livro seu e um quadro de Ivana Farias, duas obras de artes genuinamente Maranhenses.
    Esse conto me chamou atenção por causa do seguinte contraste: o nome, tão doce, uma alusão ao romantismo, e o desfecho trágico, uma alusão à obra Rodriguiana. estou certa?

    Abraço,

    Clara

  2. jose carlos silva

    Meu caro Deputado,

    Fui surpreendido com a notícia no blog do Marco sobre sua possível disputa pela vaga de Desembargador no quinto constitucional da OAB . Refeito .da surpresa, passei a analisar o seu comportamento de ultimamente e cheguei à conclusão que voce está realmente com perfil de MAGISTRADO. Como seu eleitor, não sei se prefiro que o senhor continue Deputado ou se prefiro que va oxigenar o Tribunal de Justiça, pois o mesmo está precisando de gente nova.

  3. Sonia Maria Amaral Fernandes Ribeiro

    Prezado amigo Joaquim,
    Li a pouco, no blog do Marco D’Eça que vc vai concorrer a uma vaga de desembargador.
    É verdade?
    Apesar desse espaço não ser o adequado, gostaria de, se possível, vc me passar um e.mail confirmando ou não.
    De já adianto que estou na torcida. Acho que o TJ ganhará muito com a sua presença.
    Me dê essa grande notícia.
    Um abraço,

  4. Euterpe

    Joaquim,

    Que saudade estava desta sua escrita que nos transporta… já havia lido esse conto antes e como antes senti a mesma sensação de estar passeando por aquela mesma praça e assistindo àquela cena de Clara no banco da praça…
    Euterpe

  5. Karina Silva

    JOAQUIM,

    Se a respeitada juiza Sonia Amaral que conhece o TJ como poucos, está entusiasmada, na torcida e achando que o TJ ganhará muito com a presença do Advogado Joaquim Haickel, eu , como eleitora do JOAQUIM, leitora assídua das suas crônicas- é o melhor cronista do Maranhão- so tenho que fazer figa para que o mesmo concorra à vaga de Desembargador.

  6. Eiane

    Bom Dia Joaquim, que lindo conto. E aí Clara existiu ou é mera fantasia???
    abraços

    Resposta: O que você acha? Assim é se lhe parece!

  7. Magno Soares

    Pô, Joaquim! Adoro tuas sinestesias!
    Lindo conto.
    Valeu!

    (magno soares)
    PS: Qdo tiver um tempinho passa lá no meu blog: http://magnosoares.zip.net. Os meus primeiros contos postados são os melhores. Quero muito saber tua opinião. Seria muito importante pra mim! Grato.
    Abrs.

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