MEUS PÊSAMES

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A má crendice
ao faturamento
à pergunta que você não fez
ao amor conjugal de duas pessoas que se odeiam
à carta de um suicida na hora da última ciranda
a quem sabe o que é melhor
ao herói
ao covarde
à missa dos fariseus
à resposta não publicada
à procissão dos omissos
aos que amam os que odeiam
primeiro interrogatório de si mesmo
ao segundo interrogatório de todos
aos que ouvem
aos que falam
à ecologia
à fome
à miséria
à liberdade
à viúva
ao órfão
ao morto
meus pêsames.

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Leal ou fiel?

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“Quando eu voltar a São Luís irei parabenizá-lo pessoalmente por sua grande conquista na Academia Maranhense de Letras. Esse feito é prerrogativa de poucos. Nobre Deputado e Imortal.

OBS: Por gentileza post novamente o seu excelente texto sobre LEALDADE E FIDELIDADE.
Abçs.

Márcia soares”

Sei de antemão que o que vou dizer aqui, hoje, neste nosso bate papo, vai chocar muita gente. Mas é assim que fui ensinado a agir e é assim que sempre faço na minha vida. Digo o que penso, mesmo que para isso tenha aprendido a dizê-lo de tal modo, que mesmo chocando algumas pessoas, o que diga, possa suscitar algum acréscimo no indispensável conhecimento de nós mesmos e da vida.

Sou da opinião que lealdade e fidelidade são duas coisas bem diferentes, em que pese o fato de serem facilmente confundíveis.

Diferenciar coisas tão parecidas, e que ainda por cima se completam e se confundem é uma tarefa extremamente difícil, o que geralmente requer que se usem exemplos claros e práticos para dirimir qualquer possível duvida.

A principio pode-se pensar que se trata do uso de palavras diferentes para expressar a mesma idéia, a mesma ação, o mesmo sentimento. Não é. Da mesma forma que ética é diferente de moral, lealdade difere de fidelidade.

Este é um tema tão controverso que talvez não iremos exauri-lo em uma única crônica dominical, mas mesmo assim vou tentar.

Lealdade é uma espécie de mãe, de coletivo de fidelidade. Lealdade você tem que ter em primeiro lugar para consigo mesmo para que só então, possa ser no mínimo fiel para com os outros.

O mais incrível nisso tudo é que o oposto de fidelidade é infidelidade e de lealdade é deslealdade. No entanto há uma palavra que sintetiza o oposto das duas. Traição. Inclusive, traição não possui um antônimo único, prefixal. Não existem as palavras intraição ou destraição. Mais incrível ainda é que quando se fala de lealdade ou de fidelidade, o que nos vem imediatamente na cabeça, antes de qualquer outra coisa, é o seu antônimo.

Um cônjuge pode ser espiritual e mentalmente leal ao outro e ser carnalmente infiel. Este pode ser desleal mentalmente para com o outro sem nunca tê-lo traído carnalmente.

Tempos atrás comentei esse assunto numa roda de amigos e notei o mal estar que causei, principalmente em algumas mulheres que estavam na conversa. Para algumas delas pareceu que eu estava tentando tirar uma carta de seguro, uma licença previa e tácita para trair. Quem pensou assim se enganou. Tentava era mostra-lhes o peso, a importância de certas ações, de certos sentimentos, nem sempre claros, nem sempre bem entendidos.

Em minha opinião a lealdade é um sentimento maior, individual. Independente do outro. Meu, pra mim, por mim. Fidelidade é coisa externa, de mim para o outro. É o sentimento, o vinculo que há entre animal e amestrador. Entre senhor e servo.

Um político pode permanecer leal, mesmo não podendo cumprir um compromisso preestabelecido. Mas às vezes seu código de ética é tão frágil, que não lhe fornece moral para que seja honrado e leal, fazendo com que se torne um reles traidor infiel.

Caso real é a historia daquele político que tendo se empenhado na candidatura de três correligionários, depois da eleição destes, teve tratamentos distinto de cada um deles.

O primeiro, apesar de ser analfabeto, mas tendo grande senso de honra manteve-se leal a si e fiel ao companheiro. Exceção que confirma a regra.

O segundo, apesar de pouco instruído, mas sendo sábio, antes de cometer qualquer ato que pudesse ser interpretado como infidelidade, chamou o bom amigo das horas difíceis e mostrou-lhe a situação em que se encontrava. Foi leal consigo e com o outro, apesar de não cumprir in totum o que havia sido acordado. Meno male.

O terceiro, apesar de doutor, sendo covarde o bastante para não enfrentar a situação de cabeça erguida, sumiu sem dar explicação. Foi desleal e infiel consigo e com o companheiro. Com esse, o julgamento da historia será impiedoso.

Mas o melhor e mais claro exemplo da diferença que há entre lealdade e fidelidade se encontra na historia medieval de Tristão e Isolda(não percam o filme em cartaz nos cinemas), onde o amor de um rapaz por uma moça supera o sentimento de gratidão e devoção dos dois para com o pai adotivo dele que é esposo dela.

Em Tristão e Isolda, ficam bem aclaradas as semelhanças e as diferenças entre lealdade e fidelidade. 

Há uma linha tênue entre estes dois sentimentos, entre estas duas ações, mas em minha opinião, são coisas bem distintas uma da outra.

Se perguntarem pra mim como prefiro ser tratado, responderei sem titubear, prefiro que as pessoas me sejam leais.

 

PS: Assistindo as chamadas da próxima novela das vinte horas da Rede Globo, “Paginas da vida”, escrita por Manoel Carlos, vi que o personagem Olívia, interpretada por Ana Paula Arosio, diz uma coisa muito parecida com isso, lealdade e fidelidade não são a mesma coisa. Resta apenas se saber em que contexto será desenvolvida e explorada tal afirmação, por este que é um dos grandes mestres da polemica televisiva.

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Um Pedaço de Ponte – Parte IX

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Dando continuidade ao texto “Um Pedaço de Ponte” leia a seguir: 
 
Padre Nosso
 
ÍNDICE 
 
I – No lugar onde eu nasci
II – O padre
III – Três horinhas, saía pela sacristia
IV- Cruzava a praça – nome do avô do ex-prefeito
V -Saboneteira na mão, toalha branca no pescoço, quixotesco, ia banhar-se na casa da viúva Sibá – da padaria
VI – Seis horas, já banhado e paramentado, rezava a missa: “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…” amante
VII – Poema?  Conto?  Ponto.
 
I
 
NO LUGAR ONDE EU NASCI – Ex-cidadezinha.  Três mil habitantes na zona urbana e o restante, para completar um pouco mais de seis mil, na zona rural De ruas paralelas e transversais, com exceção da Rua do Escorrega (diagonal às outras, mas paralela à curva que o rio fazia quase dentro da cidade). Arquitetura pós-colonial, alguns casarões, moradas inteiras, meias-moradas, portas e janelas e as típicas “quítandas-residências” onde na frente da casa o proprietário consegue o sustento da família que mora nos fundos.  Urbanisticamente era uma cidade igual às outras: a matriz, as praças, o coreto, a delegacia, o cartório, a prefeitura, a casa do coronel, o cabaré, o ginásio que hoje é o segundo grau, e o mundo em volta.
 
II
 
O PADRE – Francisco das Chagas Bento.  Para uns o padre Chagas, para outros, padre Bento, para alguns, padre Chico e para algumas simplesmente Chiquinho.  Nascido na capital onde cursara o seminário e proveniente de família abastada, era o quinto de cinco filhos que antes dele já deveriam ser advogado, médico, engenheiro e político.  Só restava-lhe a batina, para a qual foi guinado desde cedo pelas três tias beatas: D. Dada, D. Dedé, D. Didi (Damiana, Deocleciana
e Dinorá).
Desde menino, levado pelas tias à igreja, decorara e mais tarde aprendera rezar missa, ladainhas, cânticos e sabia a bíblia de trás para frente.
Ordenado padre seria mandado para a paróquia de São Pedro, num município onde sua família tinha terras e era poderosa.
Já estava ali há mais ou menos uma geração.
 
III

“TRÊS HORINHAS, SAÍA PELA SA CRIS TIA
Àquela época, por aquelas bandas era hora de todos tirarem um cochilinho.  Os hábitos mudaram muito desde então. Acordava-se cedo, cinco e meia, seis horas.  Tomava-se banho, tomava-se café e trabalhava-se até uma, duas horas da tarde, quando se almoçava e tirava-se um cochilo até mais ou menos cinco horas.  Isso quem podia.
Quem quer que saísse à rua nada ou ninguém veria. A cidade era deserta.  Só uma figura era movimento naquela hora na cidade (isso há mais de cinco anos, desde a morte do padeiro, José Leopoldo de Cintra, português fino e estimado, que falecera depois de uma noite de amor com sua esposa).

lV
 
“CRUZ4 VA A PRAÇA – NOME DO AVÔ DO EX-PREFEITO -A praça da matriz como era conhecida por alguns também tinha outro nome: “‘Praça Rodrigo Coelho em homenagem ao avô de um ex-prefeito eleito num desses intervalos que há entre a existência de uma oligarquia e outra.  Rodrigo Coelho era, na verdade, um ex-escravo que alforriado no Ceará imigrou rumo oeste, firmando residência numa das curvas do rio, um pouco ao norte da cidade.  Trabalhador, Rodrigo casou-se com uma filha de criação do Dr. Oliveiro e deu origem a sua descendência.
Certa vez numa disputa de coronéis pelo domino político, o velho Dr. Oliveiro, quase no fim da vida, se aproveitou e lançou candidato próprio às eleições: o neto de Rodrigo Coelho, ex-prefeito e hoje mais um quitandeiro.
 
V
 
“SABONETEIRA NA MÃO, TOALHA BRANCA No PESCOÇO OUIXOTESCO, IA BANHAR-SE NA CASA DA VIUVA SIBÁ – DA PADARIA” – Dona Sebastiana Erundina Pinheiro era a viúva do padeiro José Leopoldo de Cintra, Portugal Morena balzaquiana, formosa e insinuante, havia, mesmo que involuntariamente, contribuído decisivamente para a morte do marido, pois o Lepô como era conhecido, morrera após a sofreguidão de uma noite de amor com seu cônjuge, herdeira da padaria, da mercearia, de três quitandas, do armarinho e da fazenda de vacas leiteiras que abastecia toda a cidade.
Depois da morte do marido, Dona Sibá, sozinha, consolava-se entregando-se a religião e as obras de caridade.
 
VI
 
SEIS HORAS, JÁ BANHADO E PARAMENTADO REZ4 VA A MISSA: “EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO… “AMA N TE – Dizia eu, lá com meus botões.  Certa vez amuado, não conseguia tirar a empregada da casa de seu Custódio da cabeça, fui brechá-la tomando banho.  Pulei o muro de trás da casa de meu pai, caí no quintal do seu Zezico; pulei a cerca e estava na vacaria do finado Lepô. Quando tentava pular o cercado vi e ouvi coisas e sons estranhos.  Passarinheiro, mansamente, fui ver o que era e deparei com o padre e a viúva cantando salmos, louvando a Deus e aos profetas enquanto desesperadamente, para usar um termo adequado, fornicavam.
 
VII
 
No lugar onde eu nasci,
o padre,
três horinhas,
saía pela sacristia,
Cruzava a praça – nome do avô do ex-prefeito.
Saboneteira na mão, toalha branca no pescoço,
quixotesco, ia banhar-se na casa da viúva Sibá – dona da padaria.
Seis horas já banhado e paramentado, rezava a missa:
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…”
Amante.

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Mais vale um adversário leal que um correligionário traidor *.

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* Adaptação literária do discurso proferido terça-feira, 13 de outubro de 2010 na Assembléia Legislativa do Maranhão.



Faleceu no último dia 6 de outubro, em São Paulo o deputado Pedro Veloso.

Pedro era, assim como eu, um dos representantes de Pio XII, lugar que tenho certeza meus mais assíduos e atentos leitores assim como os frequentadores das galerias da Assembléia Legislativa do Maranhão, já me ouviram falar sobre ele, pois sempre foi o município pelo qual muito me empenhei.

Eu e Pedro éramos aquilo que se podia chamar de leais adversários. Pessoas que mesmo em lados opostos, cultivam um bom convívio baseado na boa educação, no bom costume de tratarem-se cordialmente, até mesmo com certa reverência. Fazíamos isso, principalmente pelo fato de sabermos exatamente os riscos que se corria em levar para o lado pessoal algo que era eminentemente político e eleitoral, algo localizado e restrito a um único município.

Às vezes ficava muito difícil portar-se como um cavalheiro. Isso acontecia quando os embates locais em Pio XII eram impossíveis de evitar, mesmo porque em se tratando de política municipal, com todos os seus contornos de intriga e inimizade pessoal, por parte dos chefes políticos municipais, os ânimos se exaltavam e o clima ficava realmente quente.

Como são engraçadas essas coisas da política! Na última vez em que falei com Pedro, uns três meses atrás, ele estava aparentemente melhor, e me disse que não via a hora de começar a campanha pois isso iria dar-lhe mais forças, mais vontade de superar esses tempos difíceis.

Naquela ocasião ele me disse que o prefeito de Pio XII, a quem eu sempre apoiei, o mesmo que várias vezes fui à tribuna defender das acusações levantadas por Pedro, o mesmo que ajudei duas vezes a se eleger, estava me traindo. Pedro me disse que soube que o prefeito estava inventando uma desculpa para não mais votar em mim, dizendo que a governadora Roseana havia sugerido que ele votasse em um certo Secretário de Estado, mas que ele iria votar também em um outro deputado, a quem ele, o prefeito, devia um bom dinheiro e não tinha como pagar, a não ser com votos.

Nós rimos muito disso tudo. Nos lembramos das pelejas que travamos por causa do tal prefeito, comentamos sobre a fraqueza dos homens, e lamentamos que o caráter de alguns fosse tão frágil quanto um castelo de areia construído na arrebentação das ondas do mar.

Pedro, em tom grave, me disse que a campanha de 2010, em Pio XII, poderia ficar sem nenhuma graça, pois tanto eu quanto ele poderíamos não estar presentes, eu vitimado por uma absurda traição e ele atingido pela grave doença contra a qual lutava com todas as suas forças.

Respondendo-lhe a isso eu disse para ele que caso a traição se consumasse, que ele reservasse um lugarzinho em seu palanque para que eu pudesse subir e pedir voto para ele pois tinha fé em Deus que na campanha de 2010, eu poderia até sucumbir à traição, mas torcia e acreditava que ele venceria mais a batalha contra a doença e que logo estaria firme, em campanha, rumo a mais um mandato de deputado. Até brinquei, dizendo que, para tudo ficar mais correto, só faltava agora ele e o pai dele irem comigo falar com Zé Sarney e voltarem a fazer política no grupo a que sempre pertenceram. Ele sorriu e disse que tanto uma coisa quanto a outra eram muito difíceis de acontecer, que o mais fácil seria ele simplesmente votar em mim, caso ele não tivesse condições físicas de enfrentar uma campanha, pois o prazer maior dele, seria ver a cara de seu adversário, o prefeito, quando o deputado que sempre o defendeu, fosse apoiado por seu adversário, isso porque ele, o tal prefeito, havia me trocado “por 30 moedas de prata e alguns caderninhos”.
Mesmo doente Pedro fazia planos para o futuro. Sabedor da gravidade de seu caso, não esmoreceu, jamais deixou de lutar e muito menos de pensar em sua terra e em sua gente.

No final, Pedro acertou e eu errei. Não estaremos, nem eu nem ele em Pio XII, na campanha de 2010.
Perdi um adversário e fiquei triste por isso. Gostaria que todos os adversários fossem como Pedro Veloso. Leal e correto.

Perdi um correligionário e se fiquei triste por um lado, mas por outro fiquei aliviado, porque certas “amizades”, é melhor não tê-las…  

Como disse certa vez o senador Cafeteira e costuma repetir o ex-deputado Aderson Lago: “É preferível nos juntarmos a um leal adversário do que aceitarmos a ajuda de um traidor”.

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Um Pedaço de Ponte – Parte VIII

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Dando continuidade ao texto “Um Pedaço de Ponte” leia a seguir: 
 
Na trave 
 
      Coló era bem menor que os outros pequenos.  Ao invés de jogar, preferia ficar sentado ao pé de uma das traves com a japonesa na mão – microfone – “Lá vai Chico pela esquerda. Passa bem por Piticáia. Toca para Sarará. Ele pára, olha, enfia para Dicão. Dicão mata no peito e arreia na grama. 26 corridos do segundo tempo, 1 x O para o time de MadreDeus lá vai Dicão, pode marcar, atenção, chutou, na traaa… “‘
Trave de pelada, na areinha, são dois paus de mangue, enfiados no chão e um em cima, às vezes, amarrado com cipó.

Neste dia, Coló não voltou para sua casa, ali no Lira. Foi levado às pressas para o HospitaL O chute de Dicão derrubou o pau da trave na cabeça do Osmar Santos, da Areinha.

No Hospital, Coló chegou tarde na dividida com a morte. A pelada acabou com o placar de Vasco da MadreDeus 1, Belira Esporte Clube 0. No Instituto Médico Legal, o laudo Médico é lido: “O menor Colombo Lopes Botelho faleceu hoje à tarde antes de dar entrada no Socorrão, vítima de uma bolada na trave. O poste superior, que não estava bem amarrado, caiu sobre a cabeça do garoto, causando-lhe esmagadura do crânio com substancial perda de substância.”

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DISCURSO DE JOSÉ LOUZEIRO (LIDO POR SEBASTIÃO MOREIRA DUARTE) EM RECEPÇÃO A JOAQUIM HAICKEL

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EM 02.10.2009
 
 
Senhoras, Senhores,
Caros amigos, ilustres confrades desta nossa tão querida Academia Maranhense de Letras, sabiamente conduzida por Lino Moreira, sucessor dos valorosos intelectuais Joaquim Itapary e Jomar Moraes, que tantos e importantes trabalhos já desenvolveram em benefício desta Casa:

Este dia 2 de outubro de 2009 passa a ser, para mim, um dia de extrema importância, pois aqui estou para recepcionar o querido amigo e agora confrade Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel, a quem conheço desde os tempos da revista Guarnicê, aventura bem sucedida de criar em nossa terra, no começo dos anos 80, uma revista que falava de arte, literatura, cinema e cultura, de modo geral.

Mas, antes disso, gostaria de poder dizer-lhes das recordações que tenho deste lugar.  Neste mesmo prédio centenário funcionou a Biblioteca Pública do Estado, e era para cá que eu vinha, aluno do Colégio São Luís, do professor Luiz Rego, fazer minhas pesquisas e exercícios de Geografia, que a professora Maria Freitas passava e a que exigia aplicação.  Aqui chegando, neste casarão cheio de livros, passei a contar com a ajuda de um funcionário da Casa, que era o poeta Corrêa da Silva, membro desta Academia, e com quem muito aprendi.  Ele era filho de dona Seluta, pessoa admirável, que vivia seus dias a lavar e engomar, mas tirava um deles por semana para fazer as entregas nas casas da sua clientela.  Meu pai lavava suas camisas de punhos duplos com ela.  Era parte de sua indumentária de diácono da Igreja Presbiteriana, ali na Praça da Alegria, cujo pastor titular era Benedito Aguiar.

Ao voltar a esta Academia, senhor presidente, meus ilustres confrades, minhas senhoras e meus senhores, sinto-me tomado pela emoção.  É como se estivesse retornando à minha própria casa, que ficava na Camboa do Mato, onde havia uma fábrica de fiação e tecelagem, que empregava quase todas as pessoas da região, principalmente as mulheres.

Mas hoje minha função não é falar de mim, nem do passado desta cidade que tanto amo, e, sim, receber para nosso convívio um jovem admirável por seu talento, por seu caráter, por seu temperamento franco e alegre.  Por sua literatura leve, coloquial e cinematográfica.  Homem conhecido por não fugir das polêmicas, por defender suas idéias com unhas e dentes, e por sempre colocar a arte e a cultura de nossa terra em primeiro lugar.  Falo de Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel.

Quero primeiramente agradecer ao Joaquim por ele ter me distinguido dentre tantos confrades para saudá-lo neste dia tão importante.  Penso que ele fez isso não apenas por sermos bons amigos, mas também como gesto simbólico, para distinguir especificamente o segmento artístico e literário a que tanto ele quanto eu estamos mais ligados: a literatura voltada para o audiovisual, para a televisão, para o cinema documental e ficcional.
Joaquim Haickel deve ser exaltado por seu talento literário multifacetado, ora como contista, ora como poeta, ora como articulista, e agora, mais recentemente, também como cineasta premiado dentro e fora de nosso país.

 Joaquim se destaca em um cenário no qual figuram personagens marcantes de nossas letras e de nossa cultura.  Nomes como os de bons cronistas, renomados poetas e pesquisadores obstinados, como é o caso de companheiro Ubiratan Teixeira que, sozinho, fez um dicionário de teatro e de suas personalidades, coisa essa que no Rio seria obra de uma numerosa equipe.  E o que é melhor: a edição é primorosa, do Instituto GEIA que tem publicado obras da maior relevância e alta qualidade gráfica, e conta com a supervisão do nosso também confrade Sebastião Moreira Duarte.

Entre os poetas, que por aqui desenvolvem seus trabalhos, eu ouso mencionar alguns que são de altíssima relevância, como Laura Amélia Damos e Arlete Nogueira da Cruz, Ceres Fernandes, Alex Brasil e mestre Nauro Machado.  Há o fertilíssimo Luís Augusto Cassas, Salgado Maranhão, o saudoso Bandeira Tribuzi e o clássico José Chagas, sem nos esquecermos de Roberto Kenard e Celso Borges, parceiros de Joaquim na revista Guarnicê.

Entre os ficcionistas de primeira linha estão José Sarney, com sua obra-prima, Saraminda, Ivan Sarney, com o inesquecível Chapéu de couro e palha, e o jovem José Ewerton Neto, conquistador de prêmios.  Entre os pesquisadores temos que lembrar Jomar Moraes e Lino Raposo Moreira, responsáveis pela bem cuidada 3ª edição do Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão, de César Augusto Marques.  Jomar elaborou o trabalho crítico, numa belíssima edição, Lino incumbiu-se do índice remissivo da importante obra.

Outros renomados estudiosos da nossa História são Carlos Gaspar, Mílson Coutinho e o admirável historiador que é Carlos de Lima.
Se os nossos escritores são ignorados pelos críticos do Sul do País, azar deles, dos críticos, pois isso significa, além de preconceito, limitação cultural e, por que não dizer, mental.

Esta nossa cidade continua a ser um celeiro de pensadores e grandes mestres da arte de escrever.

E entre os expoentes da nova geração de intelectuais, é para mim prazeroso aqui estar para falar de um dos mais expressivos deles: Joaquim Haickel, agora membro desta Academia.

Conheci Joaquim Haickel na lide das letras e da cultura, na época do Guarnicê, mas foi Ivan Sarney quem nos aproximou ainda mais, através de nossa paixão comum, o cinema.  Queríamos implantar em São Luís um pólo de cinema, e reunidos, numa dessas noites agradáveis, na casa de um amigo, lançamos a idéia, que não vingou.  

Mas, sendo Joaquim Haickel um transformador de sonhos em realidade, jamais tirou de mira a intenção de criar um pólo de cinema nesta nossa querida cidade.

Eu vinha de maravilhosas experiências no cinema. Havia feito os roteiros cinematográficos de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia e Infância dos mortos, que resultou no filme Pixote, ambos baseados em romances de minha autoria e dirigidos no cinema pelo argentino Hector Babenco.

Ivan já havia feito repetidas experiências com o saudoso Super-8 e Haickel era apenas um cinéfilo de primeira linha.  Já vira quase todos os filmes exibidos no País.

Nosso novo confrade é o primeiro filho de Clarice e Nagib Haickel e nasceu no dia 13 de dezembro de 1959.  Sonhador, romântico, aventureiro, apaixonado, corajoso, honrado.  Devotado a dois verbos essenciais: pensar e fazer. 

Joaquim nasceu em uma época de muita efervescência.  Uma época que deu seus frutos no que viria a se constituir na maravilhosa geração dos anos 60 e 70, com sua rebeldia, seu culto à juventude, a opção pela imagem. Foi quando a televisão, recém-chegada nesta capital, tomou de assalto os lares e as noites dos ludovicenses.  Joaquim é, em sentido próprio, o primeiro daquela geração a renovar as forças criativas desta instituição.

O novo acadêmico estudou nos colégios Pituchinha, Batista e Dom Bosco.  Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.

Seu primeiro livro, escrito entre 1975 e 76, só foi lançado em 1980. Intitula-se Confissões de uma caneta, contos premiados no Concurso Cidade de São Luís.

Em 1981, lançou O quinto cavaleiro, poemas.  Em 1982, premiado no Concurso Secma/Sioge/Civilização Brasileira, lançou o livro de contos Garrafa de ilusões. Também em 82, Joaquim Haickel e Celso Borges, côadjuvados por Roberto Kenard, Ivan Sarney, Ronaldo Braga e pelo irmão caçula de Joaquim, Nagibinho, produziram e apresentaram o programa Em tempo de Guarnicê, levado ao ar todas as terças-feiras pela então jovem Mirante FM. Foi um programa pioneiro e de sucesso que falava de literatura, arte, cultura e tocava a música feita, com muita competência, no Maranhão. Esse programa de rádio foi o embrião do que viria ser, logo em seguida, a mais importante revista cultural Maranhense daquele tempo.

Manuscritos, seu segundo livro de poemas, quarto até então, foi lançado em 1983, quando também ele começou a editar a revista Guarnicê, que foi publicada até 1986.

Gostaria de ler para vocês quatro dos poemas feitos por Joaquim nessa época, textos que, para alguns, são na verdade mini contos, e que acredito estarem entre os melhores, não só entre os de sua lavra, mas de seu tempo:
 
CARRARA
 
Quando se tira
mais do que se põe
o poema vira escultura;  
 
 
SER MENINO
 
Arriar o calção
e mijar o mundo.
 
PADRE-NOSSO
 
No lugar onde nasci, o padre, três horinhas,
Saía pela sacristia e cruzava a Praça Cursino
Rabelo – nome do avô do ex-prefeito.
Toalha branca no pescoço, saboneteira na mão,
quixotesco, ia banhar-se na casa da viúva Sibá
– dona da padaria.
Seis horas, já banhado e paramentado, rezava a Missa: Em nome do pai, do filho e do espírito santo…
“amante”.
 
AMBULANTE
 
Maria Rita armava barraca na mureta da
Praça Benedito Leite e vendia: Dois-tão de
pernas grossas; duas coxas macias, ancas
graciosas e luzidias como as da égua Esmeralda, caso de amor de “seu” Dico.
Cintura de umbigo tufado – culpa da parteira “Dona” Maria José do Bom Parto.
Peitos ainda durinhos, mas já querendo
murchar de tanto freguês apalpar.
Pescoço de bailarina, cabelos de espanhola, olhos de moça-virgem e andar de brincar
ganzola.
Maria Rita armava barraca e vendia…
 
Em 1984, Joaquim e seus comparsas lançaram a Antologia poética Guarnicê. Em 1985, a Antologia erótica Guarnicê. Em 86, o livro de contos Clara cor de rosa. Depois de uma pausa editorial, em 89, ele reúne poemas em Saltério de três cordas, juntamente com Rossine Correa e Pedro Braga.

Mas foi só em 1990, segundo o próprio Haickel, que amadureceu o seu primeiro livro (“os outros haviam sido apenas ensaios do que viria”): coletânea de contos lançada pela Editora Global, A ponte foi bem recebida por Artur da Távola e Nelson Werneck Sodré, a quem presenteei um exemplar do livro de Joaquim.  Nelson reconheceu nele o talento inato dos bons contadores de história, como disse em carta endereçada a Joaquim.  A Artur, que seria colega de Joaquim na Assembléia Nacional Constituinte, em 1987, coube prefaciar A ponte.  Lá ele diz: “Joaquim Haickel é um facundo. Na vida como na literatura. Raros escritores são, na arte, o que na vida são.  E sua facúndia existencial estica-se para a literatura.  É um célere, um devorador…  A mistura de velho árabe sábio com garoto levado, que lhe marca a tipologia e o temperamento, aparece nos contos…  Sua literatura imita-lhe a vida.  E sua vida (ah! que alívio) é venturosa.  Sim, enfim, senhores, eis que surgiu alguém naturalmente feliz e que do fundo da alegria de viver é capaz de encontrar a tragicidade, o espanto, a parada sensível.  E assim como se atira a viver, sem tréguas, lamúrias ou timidez, vai criando e devorando vivências e personagens com apetite invejável.” 

No pósfacio de A ponte, Rossine Correa mostra mais uma vez o Joaquim inventor de realidades tão verossímeis, que são capazes de enganar até os mais argutos: “Quanto a mim – diz Rossine – viciado em leitura a ponto de já haver sofrido a acusação de gostar mais dos livros do que dos homens, nem sempre descobri o caminho da fonte, quiçá por amor a muitos deles, chegando a ser logrado pelo autor de A ponte. Acontece que lera um conto sobre a Coluna Prestes, narrado por um certo Tério Tino, testemunha ocular daquela aventura.  Encontrando o escritor em uma manhã de sol tropical, entre ladeiras e sobrados, lhe perguntei como e onde poderia entrevistar o tal personagem, que ele, em uma nota de pé de página, dissera estar vivo, com 70 anos, num asilo de mendicidade em São Luís.  Como eu poderia perder a oportunidade de conhecer um herói popular, vivo e mendigo, relacionado à Coluna Prestes?

“Percebendo que eu, um historiador, confundira totalmente as fronteiras da verdade e da fantasia, Joaquim Haickel explodiu em uma gargalhada…”

 Passando ao campo da cinematografia, Joaquim produziu o filme “The Best Friend”, o Amigão, que conquistou os prêmios de melhor filme do Júri Popular, e melhor filme de cineasta maranhense do Júri Oficial, no Festival Guarnicê de Cinema e Vídeo, realizado pela Universidade Federal do Maranhão em 1984.  Naquele mesmo ano, participou de um concurso de roteiros para cinema, promovido pelo Departamento de Assuntos Culturais da UFMA, no qual mereceu menção honrosa.  Mas, para ele, o mais importante daquele evento foi o comentário de um dos jurados, José Chagas, hoje seu confrade, que confessava não estar preparado para ler um roteiro apresentado da forma técnica como aquele fora apresentado.  Chagas disse mais: tinha certeza que ali havia uma história com potencial incrível para ser contada em forma de filme.  É que Joaquim havia comprado um livro de Doc Comparato sobre como fazer roteiro para cinema e televisão, e preparou a adaptação de um conto seu, com roteiro técnico, marcação de câmera, iluminação e sequência, não se atendo apenas ao argumento literário e à sinopse cinematográfica.  Tratava-se de A Vingança, que está em seu livro Garrafa das ilusões.  Joaquim tentou realizar o respectivo filme, mas não o conseguiu, por dificuldades técnicas e porque, naquela época, não havia no Maranhão uma atriz com desprendimento e desnudamento bastantes para desempenhar determinado papel desprovida de qualquer pano.
Mas Joaquim é incansável: descansa carregando piano.  Dorme com um olho aberto, para não perder o momento que passa.

Em 2003, na comemoração dos vinte anos da revista Guarnicê, a Clara Editora e as Edições Guarnicê publicaram o Almanaque Guarnicê, espécie de ensaio-entrevista-reportagem, a cargo de Félix Alberto Lima, na qual vem narrada a trajetória do semanário e de seus idealizadores.  Também em parceria com a Clara Editora, Joaquim lançou naquela ocasião uma coletânea de seus melhores artigos publicados no site Clara on-line.

E como já está demonstrado que a sua invenção através da imagem cinematográfica está associada às artes de sua criação literária, façamos a passagem de um terreno para outro, com o que lançaremos mais luzes sobre o perfil multifário de Joaquim Haickel.
A modo de aperitivo, assinalemos que o inquieto e indisciplinado Joaquim valeu-se da ajuda de diversos amigos para fazer em Paço do Lumiar, em 2008, o curta-metragem Padre Nosso, de 58 segundos, baseado em um poema de sua autoria.

Curiosa tranquinagem, porém, foi a do primogênito de Nagib Haickel, a qual culminou com a realização, também em 2008, de um antigo sonho seu: roteirizar, produzir e dirigir um filme, baseado no conto Pelo Ouvido, por ele escrito nos anos 80 e publicado em seu livro A ponte.  Esse conto foi dado a público pela primeira vez de modo insólito e singular, como não raro ocorre com fatos e façanhas da história pessoal desse habilidoso carcamano Haickel.
 
Contemos o fato pela palavra de Félix Alberto Lima: “O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu veio a São Luís ministrar uma oficina de conto para jovens poetas, escritores, jornalistas e universitários maranhenses.  Organizado por Teresa Nascimento e Telma Rego, o evento contou com a participação de Antônio Carlos Alvim, Raimundo Garrone, Wilson Marques, Paulo Melo Sousa, Luís Inácio, Moisés Matias e Marilda Mascarenhas, entre outros.

“Uma semana de exercícios literários e leitura de textos de Machado de Assis, Lígia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Dalton Trevisan etc.  Cada dia um conto indicado por alguém da oficina, com uma posterior rodada de comentários.

“No penúltimo dia do curso, Joaquim Haickel sugeriu a leitura em grupo do conto Pelo Ouvido, de David Linch, o diretor e roteirista norte-americano. Lido o conto na oficina, a maioria do grupo – inclusive o próprio Caio Fernando Abreu – reconheceu, escancaradamente, traços cinematográficos que ligavam o texto a experiências anteriores do soturno diretor de Veludo azul, Coração selvagem e Twin Peaks. O conto, ambientado em Georgetown, bairro de Washington, tem como personagens Churck e Kate.

“No dia seguinte, o constrangimento foi geral.  Soube-se que o conto Pelo Ouvido era de Joaquim Haickel, e não de David Linch.”

Transmudado para o código da imagem em movimento, Pelo Ouvido foi selecionado para mais de 120 festivais de cinema, no Brasil e no exterior.  Mencionemos alguns: o 12º Los Angeles Latino International Film Festival, o 34º Festival de Cine Iberoamericano de Huelva, o Festival des Films du Monde, do Canadá, o Festival International du Film d’Amour da Bélgica, o European Independent Film Festival 2009, o Festival Internacional de Filme Independente de Hamburgo, o 30º Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano de Cuba, o 3º New Beijing International Movie Week.
Quanto a prêmios, em específico, Pelo Ouvido ganhou nada menos que doze até agora, entre eles o de Melhor Filme, no 17º Concurso Iberoamericano de Cortometrajes de Cartagena, na Colômbia; o de Melhor Diretor, no Boston International Film Festival, nos Estados Unidos; o Prêmio Especial do Júri, na Mostra de Cinema Latinoamericà de Catalunya, na Espanha.

É que, ao ser transposto para o cinema, o relato de Pelo Ouvido ganhou vida e se transformou numa peça de rara profundidade psicológica, sem falar nas qualidades técnicas que o trabalho, em imagens e sons, alcançou.

Se Joaquim quisesse fazer um longa-metragem, era só estender um pouco a magnífica atuação do talentoso casal de atores Eucir Souza e Amanda Acosta.  Bastaria aliviar a mão pesada e crítica de contista-roteirista e deixar no corpo do filme o que acabou por figurar apenas no making-off constante do respectivo DVD.

Nesse trabalho de Haickel, o que surpreende é a sutileza com que ele trabalha a relação da jovem executiva de vendas, saudável e bonita, com o marido escultor e poeta, surdo e cego, que lhe tem amor intenso e é correspondido.  Mas, para que a relação seja perfeita, ela tem que escutar as cantadas que outro obstinado admirador lhe passa, de que ela gosta e a que dá corda, sem jamais se encontrar com ele.  Em certo momento, estando na cama, esculpida pelas mãos suaves e sequiosas do marido, ela telefona para o admirador e se relaciona com o seu parceiro real, ouvindo as palavras do amante virtual como se fossem as do amado presente.  O momento é tocante, a invenção extraordinária: numa história de amor em que nada parecia haver de inovador, Joaquim Haickel consegue dar a volta por cima, descobrindo um caminho novo, admiravelmente inusitado.  A fala do amante invisível orienta a mulher para melhor relacionar-se com o marido, em sua sepultura viva de eterno silêncio.
É simplesmente genial.  Posso dizer que Joaquim Haickel é artista dotado de grande capacidade de avaliação dos sentimentos humanos, e eu aqui estou para recebê-lo também como ficcionista, como um senhor inventor de histórias, de estilo enxuto, de linguagem cuidadosa e esmerada.

Mas não para nisso a ansiedade inventiva do guerrilheiro palestino que a partir de agora arma sua partida no oásis de nosso convívio.  Joaquim tem projetos literários engatilhados: lançará até o final de novembro deste ano o livro Dito & feito, seleção das crônicas que tem publicado aos domingos no jornal O Estado do Maranhão, nos últimos quinze anos.
Para 2010, quando completará trinta anos do lançamento do seu primeiro livro, Joaquim pretende nos presentear com uma obra incomum. Chamar-se-á Múltiplo de quatro e reunirá o melhor de sua produção.  Serão contos, poemas, crônicas, roteiros de cinema, discursos proferidos na Assembléia Legislativa do Maranhão, entrevistas, fotografias.

Em 2011, preparemo-nos para a leitura de alguns de seus discursos políticos em A palavra quando acesa (o título é uma homenagem ao poeta José Chagas, de quem o tomou emprestado). Para 2012, antes de o mundo acabar, teremos o que, segundo o próprio autor, será sua obra definitiva, e na qual Joaquim Haickel falará de sua maior paixão, o cinema.  Refiro-me a 365 filmes para não precisar de psicanálise, que Joaquim começou a escrever a mais de dez anos, reunindo comentários de películas a que assistiu.  Não será simplesmente uma lista dos melhores filmes, segundo a opinião do autor, mas sua apreciação quanto a filmes que o ajudaram a formar seu cabedal de instrução e cultura, e ainda serviram para que ele consolidasse seu código moral e, sobretudo, para que ele não precisasse recorrer a qualquer dos seguidores de Freud, Jung ou Lacan.

Joaquim costuma dizer que se sente uma espécie de filho de Alexandre Dumas, pois se identifica profundamente com as personagens, as histórias e os sentimentos de honra e lealdade emanados do universo literário do grande folhetinista francês.

Perguntado certa vez qual o seu livro de cabeceira, Joaquim respondeu que eram dois livros que falavam de príncipes.  Pela ascendência árabe do entrevistado, o entrevistador imaginou que um desses livros deveria ser As mil e uma noites, mas Joaquim respondeu-lhe que os dois títulos eram O príncipe e O pequeno príncipe, “principalmente” – ele completou – “por causa do capítulo XVII do livro de Nicolau, que discute o que seria melhor que fossemos, amados ou temidos, e por aquela conhecida frase do livro de Antoine que nos faz lembrar para sempre que somos eternamente responsáveis por quem cativamos”. 

Cabe ainda registrar aqui que o novo confrade da Cadeira nº 37 é desportista e grande incentivador dos esportes como forma de inserção social.  Ele foi vice-presidente da Confederação Brasileira de Tênis e da Associação Desportiva Mirante, além de ter conquistado, pessoalmente, diversos títulos em modalidades como tênis, vôlei e basquete.

Projetos de responsabilidade social a encargo de Joaquim têm sido desenvolvidos pelo Instituto de Cidadania Empresarial do Maranhão – ICE, de que é membro-fundador.  Mas seu empreendimento mais obstinado consiste em consolidar a Fundação Nagib Haickel, entidade sem fins lucrativos, que pretende acionar uma rede de televisão educativa via satélite voltada para o ensino formal e para a difusão cultural, a qual contará com duas geradoras de TV, uma em São Luís e outra em Imperatriz.  A mesma Fundação também implantará, em breve, o Museu da Memória Audiovisual do Maranhão, MAVAM, incumbido de preservar a memória de nossa gente e de nossa terra por meios audiovisuais.  Para tanto, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional já está restaurando, com recursos da União, conseguidos pelo deputado Joaquim Nagib Haickel junto à bancada federal maranhense, um prédio, doado por ele, onde funcionava uma das empresas de seu pai e onde funcionará o Museu.

Observem bem como se movimenta este dínamo-gente que leva o nome de Joaquim Haickel.  Trabalhando com as mãos e com o espírito, imbuído da paciência dos beduínos na aridez do deserto, ele lutou, sofreu, resistiu, até chegar à implantação do magnífico projeto que vai acabar realizando o nosso velho sonho do polo de cinema de São Luís, desenvolvendo-o em torno do Museu.

Falei há pouco que Joaquim Haickel representa bem a geração da imagem viva, que, em nosso meio, se difundiu a contar da segunda metade dos anos 60.  Outros fatores, no entanto, explicam-lhe a preferência pelo movimento, alimentada pelo caleidoscópio de talentos que é a sua personalidade em ação.

Joaquim diz que, disléxico, foi salvo por sua professora particular, Terezinha, escolhida cuidadosamente por Dona Clarice. Era uma jovem dedicada e delicada, talvez fosse capaz de lidar com o temperamento elétrico do filho de Nagibão, tido por todos como desassossegado por demais.  A mestra notara que seu aluno obtinha melhor aproveitamento nos estudos quando ela se punha ao seu lado em condições de igualdade nas tarefas escolares, fazendo-o superar as dificuldades de leitura e o déficit de atenção, lendo para ele e com ele os livros ilustrados da biblioteca doméstica, despertando-lhe, por essa maneira, a curiosidade e a aventura do saber.

A esse primeiro influxo educativo, some-se o exemplo de seu tio postiço, Stênio, irmão de mãe Tetê e mãe Loló, um incomparável pedagogo que, invariavelmente, todos os sábados e domingos, levava o futuro cineasta e seu irmão ao cinema. Pode-se dizer que o que mais aprendeu Joaquim foi de tanto ouvir e tanto ver.

Fiz antes, também, rápida menção ao deputado Joaquim Haickel.  Foi outra aprendizagem, por osmose ou simbiose.  O acadêmico de hoje relembra que, menino, adorava ficar ouvindo as conversas dos mais velhos.  Participava, assim, desde pequeno, da vida política e empresarial de seu pai, em meio a políticos do interior do Estado e a empresários da Capital. Vez por outra, o velho Nagib tinha que arregalar os olhos na direção do filho, código cujo significado era “te sossega, rapaz!”  Muitas vezes o gesto não adiantava de nada e o pai tinha que recorrer a Dona Clarice: “- Mãe, chama Joaquim, que ele já está aqui ouvindo conversa de gente grande.”

Dividido entre os estudos e a diversão, aquele rapaz só veio a trabalhar em 1978, quando passou a assessor na Assembléia Legislativa, onde seu pai era deputado estadual.  Naquele ano participou decisivamente da campanha eleitoral.  No ano seguinte iria morar em Brasília, já seduzido pelo Parlamento, ao qual servia seu pai, então deputado federal.  De volta a São Luís, passou a ser oficial de gabinete do então governador João Castelo.  Recebia os políticos com atenção e cortesia, tratava a todos com simpatia e deferência.  Mas, certo dia, cansado de apenas abrir portas, pediu para trabalhar com o Chefe da Casa Civil, José Burnet, político experiente de quem se tornou aprendiz.

Assim foi e foi.  Joaquim procurou aprender com os melhores: primeiro que todos, seu pai, que não conseguiu transferir-lhe o jeito “caboclo” de ser, mas que, pelo contágio e pelo exemplo, lhe entregou algumas das principais ferramentas da vida – lealdade, honradez, coerência, simplicidade – e alguns de seus maiores defeitos – ansiedade e desassossego; com seu tio Zé Antônio, exemplo do que um prefeito deveria fazer e de como um deputado jamais poderia agir; com Clodomir Milet, um lorde, discreto, culto; com José Burnet, quase cego dos olhos, mas com privilegiadíssima visão política; com Ivar Saldanha, um pragmático convicto; com Pedro Neiva de Santana e Haroldo Tavares, tio e pai de sua namorada de então: o primeiro, senhor de uma elegância e de uma ironia tão bem engomada quanto seus ternos de linho tropical; o outro, um gênio planejador, magnífico sonhador; com Nunes Freire, a rudeza doce e honesta; com Castelo, presença e energia; com Alexandre Costa, leal tenacidade; com Lobão, conciliador, diplomático; e, fora de série, com José Sarney, a quem sempre cuidou de observar e analisar milimetricamente, na tentativa de aprender com ele tudo o que fosse política ou com política se relacionasse, tudo o que nela se deveria fazer e principalmente deixar de fazer.

Apoiado na popularidade que o pai deputado esbanjava por todo o Maranhão, Joaquim Haickel elegeu-se para a Assembléia Legislativa estadual em 1982, o mais jovem em todo Brasil naquela legislatura.  Eleito em seguida Deputado Federal Constituinte em 1986, foi relator da Comissão de Direitos e Garantias Individuais, responsável, entre outros encargos, pela apreciação do projeto que visava instituir a pena de morte no Brasil.  Seu parecer, vencedor, posicionava-se contrário ao projeto do notório deputado Amaral Neto.  Foi em uma audiência pública naquela comissão que nos reencontramos.  Joaquim que tinha apenas 27 anos, e já convivia com Ulisses Guimarães, Afonso Arinos, Roberto Campos, Florestan Fernandes, Nelson Jobim, José Serra, Delfim Netto, Artur da Távola, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva, para citar alguns nomes.

Acrescentemos, como detalhe, o instrumento inovador de que Joaquim lançou mão, para convencer os seus pares quanto à inconveniência da pena de morte na legislação brasileira.  Consciente de viver em tempos nos quais uma imagem vale por mil palavras, ele fez uma edição resumida do filme O caso dos irmãos Naves, famoso erro judicial de Minas Gerais, apresentou-o à Comissão que votaria o tal indesejado projeto, e esperou o resultado.  Sua tese prevaleceu sem maiores percalços.

Proveniente de emenda aglutinadora do relator da comissão de sistematização, pois vários constituintes apresentaram projeto semelhante, é também da autoria de Joaquim, a frase que abre diariamente os trabalhos nas duas casas do Congresso Nacional: “Sob a proteção de Deus e em nome do povo brasileiro, declaro aberta essa sessão”.

Por indicação de Ulisses Guimarães, o Congressista maranhense representou a Câmara dos Deputados no Congresso Americano de Jovens Líderes Mundiais, de 1987, juntamente com Aécio Neves, Henrique Eduardo Alves e Cesar Cals Neto, e em viagem diplomática à China, em 1988.  Ao fim desse mandato, não se candidatou a nenhum cargo eletivo, mas foi convidado pelo então governador Edison Lobão para secretariá-lo na pasta de Assuntos Políticos, a mesma em que, mais de uma década antes, fora aprendiz de Burnet.  Depois, foi para Secretaria de Educação.  Afastou-se dos cargos públicos de 94 até 98 para dedicar-se às suas empresas de radiodifusão: FM e TV Maranhão Central, espalhadas por mais de 50 cidades do Estado.  Naquela época plantou a semente do que viria a ser a Fundação Nagib Haickel.

Em 1998, candidatou-se e elegeu-se o deputado estadual mais votado do seu partido, mas, daquela vez não pôde contar com a preciosa ajuda de seu pai, que falecera no dia 7 de setembro de 1993, como presidente da Assembléia Legislativa do Maranhão.
Joaquim é detentor da Medalha Manuel Bequimão da Assembléia Legislativa do Maranhão, da Medalha do Mérito Timbira do Governo do Maranhão, e da Medalha Barão de Mauá, do Ministério dos Transportes.  Cidadão honorário dos municípios de Pindaré-Mirim, Santa Inês, Itapecuru-Mirim, São Domingos do Maranhão, São Benedito do Rio Preto, Vitorino Freire, seu currículo se enriquece também com a Cadeira nº 9 da Academia Imperatrizense de Letras, para a qual foi eleito em 2006, tendo como patrono o eminente Thucydides Barbosa e fundador e único ocupante, até então, o professor, escritor e humanista Vito Milesi.

O Poder Legislativo do Maranhão continua a contar com Joaquim Nagib Haickel como representante de sua gente.  Lá ele tem exercido cargos dos mais importantes, como o de Primeiro-Secretário da Casa e membro efetivo da Comissão de Constituição, Justiça e Redação Final.

Em 2008, apresentou e fez aprovar, na Assembléia Legislativa, um projeto de resolução que institui no Maranhão, a exemplo do que há em outros Estados, um prêmio de incentivo ao cinema maranhense.
 Declaradamente apaixonado por sua bela Jacira, o que não esconde de ninguém, ele não para, e continua fazendo planos para amanhã, sem deixar de realizar hoje aqueles que foram projetados ontem. 

Quando lhe perguntei sobre qual seria sua obra mais importante e em qual das vertentes de sua vida mais se sentia realizado, ele me respondeu: “Minha melhor e mais bela obra é minha filha Laila. O melhor Joaquim Haickel é a pessoa, o amigo: é aí onde eu mais me realizo, é daí que provem tudo que sou e que faço”.

Na última vez em que estivemos juntos no Rio de Janeiro, onde Joaquim foi apresentar o seu filme Pelo Ouvido em um importante festival de cinema, ele estava com as mãos sobre a mesa, e Selton, filho do Serginho – que hoje é as minhas pernas – lhe perguntou o que significavam aquela tatuagem em seu antebraço esquerdo.  Joaquim sorriu e disse para o menino que, como ele é extremamente hiperativo, que era um poema. Selton arregalou os olhos: – “Como assim!? Aí só tem sinais!” Pois bem, depois que ele traduziu para mim e para o Selton aquele intrincado código contendo 22 símbolos gráficos – tendo que esmiuçá-lo para mim, pois pouco ou nada eu pude ver em seu braço, já que estou ruim das vistas – depois que ele explicou o que estava escrito ali, nessa hora eu soube como melhor definir Joaquim Haickel, e tenho certeza que vocês concordarão comigo, depois que ouvirem o que está tatuado em seu braço, e que passo a ler agora:

Chame atenção. Faça uma pausa. A entonação demonstra sua intenção, seu pensamento, seu sentimento. Depois, uma pausa maior, que puxe outra idéia ou relacione duas.  Agora uma pausa ainda maior.  Uma parada. Cite, exemplifique. Faça suspense, insinue…  Surpreenda.  Pergunte. Depois, mude de assunto – isso sempre funciona. Valorize os coadjuvantes: eles são mais importantes & necessários do que parecem.  Comunique-se. Não se esqueça dos números: eles são indispensáveis. Nem das equações: nada funciona sem elas.  Maior?  É sempre igual a valor!  O contrário nem sempre é verdadeiro.  Não se esqueça. Todo inteiro é feito de partes. Adicione!  Multiplique! Fazer a diferença é mais ou menos feito… O Infinito.

Esse é verdadeiramente o Joaquim Haickel a quem hoje recebemos como membro desta Casa – e a quem, para tomar posse do que lhe pertence por todos os méritos, aplicamos o maior castigo: “nunca antes nem depois neste país”, nós o vimos, ou veremos calado e quieto por tanto tempo… E sem o celular ao ouvido. 

E eu que, por falar muito, sou o causador disso, proclamo-o, depois de tudo, o mais novo herói de nossa comunidade…

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DISCURSO DE POSSE DE JOAQUIM HAICKEL NA ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS

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EM 02.10.2009

Meu nome é Joaquim. Mas eu também me chamo Nagib, e é o meu duplo – ou antes, é aquele de quem sou duplo – é o meu pai Nagib Haickel a quem primeiro contemplo neste salão, esperando por mim, sentado ali, na fila da frente, entre aquelas duas mulheres maravilhosas: minha mãe, Clarice, e minha filha Laila. O presidente desta cerimônia autoriza meu discurso de posse na Academia Maranhense de Letras. Eu me levanto. Meu pai não se contém: antes que eu chegue à tribuna, ele já está de pé, aqui, diante de mim. Eu ainda não começo a falar, e o velho me arrebata a palavra, dedo em riste, enchendo o mundo com o seu vozeirão:

– Só porque tu escreves umas coisinhas por aí tu acha que é escritor, é? Tu acha que é poeta? Poeta coisa nenhuma! Tu nem bebe! Poeta é Zé Chagas, poeta é Nauro, que metem grogue. Escritor é Jomar, que aprecia as cervejas louras e as mulheres morenas. Tu nem sabe o que é bebida, rapaz! Como é que tu pretende saber o que é poesia?

Neste recinto solene, senhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhoras, aquele que orgulhosamente se intitulava um “caboclo do Pindaré, acostumado a comer tapiaca e mandubé” repete uma repreensão das mais severas que dele recebi. O caso foi há muito tempo: eram os idos de 1984. Ele andava aborrecido com o fato de eu preferir ficar fazendo a revista Guarnicê, ao invés de tomar conta dos negócios da família. Sua fúria transbordou, quando eu e Paulinho Coelho nos esquecemos de fechar o registro geral da água, no velho depósito de cimento que Nagib Haickel tinha pelas bandas do Desterro. Depósito inundado, cimento molhado, prejuízo contabilizado.

Como todo mundo sabe, meu pai não fazia por menos em termos de emoção e muitas vezes se obrigava ao papel de ator em lances cheios de dramaticidade. Na verdade, porém, ele estaria felicíssimo neste momento, rindo em seu próprio íntimo, com o bom humor que lhe fez a fama, e saboreando dentro de si o contentamento de perder a parada para o filho:

– Esse menino chegou mais longe do que eu podia imaginar. Para quem tinha extrema dificuldade em ler, para quem não sossegava um só instante, o lucro foi grande. Pois não é que ele conseguiu enganar a todos esses acadêmicos, gente culta e instruída?

Era assim que meu pai fingia que pensava, mas não era assim que ele pensava, de fato. O seu orgulho só encontraria repique no júbilo deste seu duplo, aceito membro da Academia Maranhense de Letras, acolhido por figuras da envergadura do Presidente José Sarney, amigos dele que foram professores de seu filho, como José Maria Ramos Martins, Alberto Tavares, José Joaquim Ramos Filgueiras, José Carlos Sousa Silva e Sebastião Moreira Duarte. Ele também se sentiria em casa, ao contabilizar o número de velhos amigos seus da Assembléia Legislativa e da Câmara dos Deputados, com quem seu filho irá conviver, como Benedito Buzar, Sálvio Dino, Evandro Sarney, Joaquim Itapary, Neiva Moreira e Edison Vidigal. Com toda certeza, Nagib Haickel brincaria com seu querido amigo Milson Coutinho e com o também desembargador Lourival Serejo, recomendando-lhes que tomem conta desse “menino”, sentindo-se também envaidecido de ver seu filho compartilhar a mesa com amigos dele como Ubiratan Teixeira, Carlos Gaspar, Hélio Maranhão, Mont’Alverne Frota, Carlos de Lima, Américo Azevedo, Ivan Sarney, Waldemiro Viana, Laura Amélia e Manuel Lopes. Não sei ao certo se ele teve o prazer de conhecer José Louzeiro, Lino Moreira, Sônia Almeida, Joaquim Campelo, Antônio Martins, Clóvis Sena, Ceres e Ronaldo Costa Fernandes, Alex Brasil, Magson da Silva, José Ewerton e Ney Bello Filho, uns porque cedo foram morar fora do Maranhão, outros porque, sendo de outra geração e de outro meio, não tiveram contato com ele. Em especial, quando visse aqui José Chagas e Jomar Moraes, contra os quais me comparou em total desvantagem minha, Nagibão sorriria desconcertado, franziria a testa, morderia os lábios, choraria miudinho e escondido: tamanha é a glória desses nomes, que dela, por simples contágio, algum tanto sobrará para seu filho.

Minhas senhoras e senhores:

A Cadeira que, a partir de hoje, chamarei minha na Academia Maranhense de Letras é de Inácio Xavier de Carvalho e Ribamar Pereira, e pertenceu sucessivamente a Luiz Viana, Amaral Raposo e Nascimento Morais Filho.

Inácio Xavier de Carvalho, nascido em 1871, deixa dúvida se era apenas uma pessoa. Nesta Casa foi fundador e é patrono. Ao mesmo tempo e por igual, é do Maranhão, é do Amazonas e é do Pará. Andou ainda por Minas Gerais, e encontrou, por fim, a imortalidade no Rio de Janeiro, em 1944, próximo de completar 73 anos de idade. Formado em Direito pelo Recife, em 1893, exerceu-se como magistrado, jornalista, poeta, professor de Literatura. Pelo que, de sua lavra, se sabe esparso em periódicos e publicações circunstanciais, será correta a conjectura de que ainda falta reunir escritos seus deixados nesta sua cidade natal, assim como em Manaus, onde se demorou pouco, e em Belém, onde permaneceu por mais tempo.

Sua obra compõe-se de apenas três títulos, que a poucas páginas se estendem: Frutos selvagens, Missas negras e Parábolas para bolas. Frutos selvagens é de São Luís, Missas negras é de Manaus, Parábolas para bolas é de Belém.

Frutos selvagens é de São Luís, 1894: “um dos poucos resultados positivos da época de efervescência vivida [aqui] entre fins do século XIX e princípios do século seguinte” – segundo avaliação de Jomar Moraes.[1]

Parábolas para bolas é do Pará, 1919, e é logo aqui arrolado, por suas características, que não nos ocupam em maior análise. Não se trata de livro em sentido próprio: é apenas um folheto de 32 páginas, composto de seis pequenas narrativas alegóricas, cinco sonetos e uma ode a Rui Barbosa (recitada pelo autor, num comício em Belém, por ocasião da campanha civilista daquele candidato à Presidência da República), textos a que só a ironia e o desapontamento com a política conferem sentido de unidade.

Missas negras é de Manaus, 1902, e constitui, desta vez, não apenas o que de melhor escreveu o poeta Inácio Xavier de Carvalho, mas também uma fotografia das mais vivas de uma época em transição, de intervalência e sobreposição de estéticas, de esgotamento e ânsia sem rumos, tempo de maré vazante, à espera da sigízia que, entre nós, por amor de nosso isolamento, tardaria por bem ainda meio século, até a geração de Tribuzi e Gullar. Xavier de Carvalho realiza obra de mimetismo tardio, não só em relação às matrizes francesas em que se inspira, mas em face ao simbolismo retardatário de portugueses e brasileiros. Os 37 poemas que fazem as suas “Missas Negras sem hóstias e sem vinho” povoam-se de Revoltas Supremas, Crenças Apagadas, Risos Pretos, Pecados Brancos, Alvas Grinaldas, Mágoas, Quimeras, Desventuras, “bando esquelético de Crenças”, “Sonho nu de Descrente”, Estranhas Rotas, Másculas Derrotas – substantivos e adjetivos todos em maiúsculas, conforme exigia o tributo da importação provinciana a que o Poeta se obrigava. O título Missas negras lembra o de Missal, de Cruz e Sousa, poema (em prosa) de nove anos antes, e aparece quando já mortos o próprio Cruz e Sousa, Mallarmé, Antônio Nobre e Verlaine. Mas, em que pese a essa nota de rebate epigônico, nem por isso deixou Inácio Xavier de Carvalho de pagar sua conta pela luz com que pretendeu iluminar a “tristíssima e caliginosa noite” – como lhe chamou Antônio Lobo – na qual “o Maranhão ressonava […] num fundo sono, próximo da morte”, conforme o viu e sentiu Humberto de Campos. Até a mais afinada inteligência que por então nos restava, o mesmo Antônio Lobo, não o compreendeu, tanto quanto é verdade que a inteligência brasileira – Machado de Assis incluído – não fez boa recepção à literatura representada pela aluvião finissecular de nossos pós-românticos, simbolistas, impressionistas, decadentistas. Em carta escrita, em 1908, ao jornalista Sebastião Sampaio e a qual deu muito o que falar, eis em que termos o Mestre maranhense exara a sua crítica a Missas negras: “[…] livro filiado à corrente simbolista, tal como andou em geral compreendida e praticada no Brasil, isto é: consistindo quase que essencialmente no culto exagerado do disparate, na idéia e na forma. E foi exatamente essa preocupação de escola que, a meu ver, prejudicou sensivelmente o trabalho do poeta, sem dúvida alguma, de produzir obra muito mais valiosa, se em tempo se houvesse libertado dos esterilizantes empecilhos que tal preocupação irresistivelmente lhe opôs à elaboração estética”.

A bem de Antônio Lobo, o mais vigilante e atualizado de nossos intelectuais, diga-se que sua percepção de literatura pautava-se, como a de qualquer um naqueles tempos, pelo figurino francês, mas não absorvia os padrões renovadores sugeridos, da mesma França, já desde as Flores do mal, de Baudelaire. A mal de seu temperamento enfermiço, para quem a polêmica constituía uma espécie de compulsão erógena, leve-se em conta que sua apreciação sobre Inácio Xavier de Carvalho se faz em clima de mútua desavença, veiculada pelos jornais Pacotilha, O Maranhão e Diário do Maranhão, da capital maranhense, e engatilhada pela Folha do Norte, de Belém do Pará, conforme nos diz Carlos Gaspar em trabalho recém-publicado sobre Antônio Lobo.

A contenda ocorreu no ano de 1907 e teve como causa imediata a chegada, a São Luís, do jornalista fluminense Rafael Pinheiro, vindo do Pará para aqui fazer conferências sobre assuntos variados. Antecipou-o, no entanto, a notícia de seus desentendimentos com homens de letras do Estado vizinho, fato bastante para deixar de sobreaviso os intelectuais desta terra, e mais ainda, na percepção de alguns, porque seria Antônio Lobo quem lhe daria as boas-vindas e o apresentaria aos maranhenses. Sobre uma conferência, programada com pompa e circunstância para ser pronunciada no Teatro local, com a presença do governador Benedito Leite, Agostinho Reis, redator da Pacotilha, informa ao jornal de Belém que alguns bilhetes de entrada haviam sido distribuídos gratuitamente, com a finalidade de preencher cadeiras vazias no salão do evento.

Os efeitos da notícia, desfavoráveis ao visitante e a seu anfitrião, foram glosados por Inácio Xavier de Carvalho, editorialista d’O Maranhão e propiciam fazer-se um close sobre o cotidiano das duas figuras envolvidas na querela, de seus pequenos interesses e da vida pequena de São Luís, naquela primeira década do século XX, e bem assim sobre o que, de literatura, se criava nesta Província naqueles tempos.

O autor das Missas negras – diz Antônio Lobo“tem um talento especial para troçar e descompor em verso. Mas também é só: tirando isso, o rapazinho [o tal “rapazinho” contava já 36 anos de idade] é de uma imperícia de fazer dó, quer se exprima em linguagem métrica, quer não. […] Na prosa é o mesmo descalabro e a mesma lástima. Se o moço se quer exprimir em linguagem sem metro e sem rima, ou é para se dar ao desfrute ou para dizer tolices. […].

“Ora, Sr. Antônio Lobo! Que pretensão a sua!” – a de um “espírito nulo e acanhado”, […] “coréico ou paranóico, […] um doente físico, […], o quanto basta para torná-lo irresponsável pelo que diz e escreve”. Xavier de Carvalho nega a crítica de seu oponente, lembrando que Guerra Junqueiro o saudou como “camarada literário” e que sua poesia foi recebida amigavelmente no mundo das letras por José Veríssimo, Artur Azevedo, Medeiros Albuquerque, etc.

Interessante para bem retratar o espírito da época é perderem ambos tempo e papel em agressão recíproca, a propósito de um terceto de Missas negras, em que o verbo ladrar é usado como transitivo direto:

E em complemento após da Glória Tua

Ficarás lá por cima como a Lua

E eles embaixo como o cão que a Ladra!

Antônio Lobo, escritor da velha cepa, não percebeu que a transgressão à regência verbal é o que enriquece e dá força ao verso de seu adversário. Dois anos depois dessa polêmica, ele ainda reafirma a mesma incompreensão da estética simbolista e, sobre a poesia de Inácio Xavier de Carvalho, emite a mesma opinião expressa a Sebastião Sampaio: “I. Xavier de Carvalho” – são suas palavras em Os novos atenienses – “é, incontestavelmente, uma organização poética de primeira ordem. De um alto poder de idealização e de expressão estética, sabe, aos seus temas emotivos, aplicar com maestria todos os recursos técnicos da sua arte. A única falha que teríamos a lamentar na sua obra, se acaso aqui tentássemos exercer a crítica, seria exatamente o malbarato de tão belos requisitos artísticos, no cultivo do verso simbolista, tal como andou compreendido pelos sibilinos e intraduzíveis decadistas franceses e pelos seus dignos imitadores brasileiros”. (p. 60).

Na verdade, o que há para se lamentar em Xavier de Carvalho é que ele tenha chegado tarde e repetitivo, o que, só por isso, não implica em inferioridade literária. Sonetista exímio, algumas de suas criações mereceriam acolhida franca em qualquer antologia da língua vernácula. Sua poesia revela uma tentativa de introspecção que transcende ao seu próprio eu, para desvelar a alma humana em angústia universal. Os tempos que se anunciam serão de Freud, Joyce, Pound, Proust. Inácio Xavier de Carvalho tem o pressentimento da mudança. Poderemos dizer não apenas que sua obra, mínima, ficou pelo meio do caminho, mas que ele é todo um meio de caminho. Epígono por um lado, é mal e mal percebido como o prógono que poderia ter sido: culpa da Província que tardou tanto em abrir os sentidos para os paradigmas da modernidade.

De fundador da Academia e titular da Cadeira nº 9, Inácio Xavier de Carvalho foi transformado em patrono da Cadeira nº 37, fundada por José de Ribamar dos Santos Pereira.

Não podendo encarnar-me na voz do barítono que foi Ribamar Pereira, para aqui solfejar as 217 poesias que, segundo Mário Meireles, deixou musicadas o primeiro ocupante da Cadeira 37 – algumas inclusive traduzidas para o francês, o espanhol e o italiano – eu me desculparei por lhe fazer apenas rápido aceno biobibliográfico:

Nascido em São Luís em 17 de setembro de 1898, estudou primeiras letras no famoso Instituto Rosa Nina. Poeta, jornalista, teatrólogo, orador. Bacharel em Direito pelo Pará, foi assistente judiciário do Proletariado e 1º promotor Público da Capital, no Maranhão; consultor jurídico da Caixa de Aposentadorias e Pensões de Serviços Públicos dos Estados do Piauí e Maranhão. Representante, no Maranhão, da Casa dos Artistas, da Associação do Teatro Nacional e da Associação de Cronistas de Arte. Colaborou assiduamente na imprensa de São Luís e do Acre, Belém (Folha do Norte), Fortaleza, Recife (Jornal Pequeno), Bahia (A Tarde), São Paulo, Amazonas e Rio de Janeiro. Foi professor Catedrático da Academia de Comércio do Maranhão, da Escola de Agronomia do Maranhão, da Faculdade de Direito do Maranhão e de outros estabelecimentos secundários em São Luís. Membro, também, do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Faleceu a 23 de abril de 1959.

Sobre Luiz Viana, muito não direi, para não me arriscar a cometer erros perante familiares e parentes seus, que ainda agora nos circundam. Nascido a 29 de setembro de 1889, duas ilustres casas de São Bento entroncam-se em seu nome: a dos Lobatos e a dos Vianas. De rápidos apontamentos biográficos que dele colhemos, entende-se que foi excelente em tudo: como estudante, professor, médico, jornalista, educador, homem de letras, cientista, administrador público. A esse respeito, façamos leitura das palavras de quem o conheceu e sucedeu nesta Casa: “Se quisermos definir, com justiça e justeza, a vida científica, a vida literária de Luiz Viana” – fala Amaral Raposo – “cumpre-nos afirmar haver sido ele um pêndulo de ouro, oscilando sem hiatos e sem pausas, durante mais de meio século, entre a paixão absorvente do estudo e o fanatismo incessante do ensino.

“Mais do que tudo, ele foi mestre. Mestre consumado em nossa língua, foi, igualmente, em italiano, em francês, em inglês e alemão, tal como atestam quantos mais íntima e frequentemente o conheceram.”[2]

Quanto ao perfil humano daquele meu antecessor, nada melhor que recolher o testemunho de quem faz, na vida acadêmica, a sequência da linhagem humana e intelectual de Luiz Viana: “De tio Luís – diz o romancista Waldemiro Viana – me fica na memória um retrato paradoxal: enquanto meu pai e seu irmão mais novo, Fernando Viana, me falava do seu extremo rigor (ao ajudar meu avô na educação dos cinco irmãos), na condição de primogênito, a calar os mais novos ante um simples franzir de cenho, eu, que já o conheci no ocaso de sua vida, guardo dele a lembrança de um doce velhinho, extremamente culto, a dar-nos, bonachão, qualquer explicação sobre qualquer assunto, cuja dificuldade desaparecia face à aula ministrada.

“As disciplinas de sua predileção eram Português e História Natural. A esse respeito, por sinal, lembro de uma entrevista que concedeu à TV Difusora (a única, àquela época), por ocasião de sua posse na Cadeira 37 da Academia Maranhense de Letras. Perguntado sobre o porquê dessa preferência, respondeu, orgulhoso: “História Natural, por natural propensão; Português, por ser maranhense“.

“Iniciou suas atividades literárias com o livro de crônicas lançado no Rio, O Dia, do qual não tenho quaisquer notícias. Foi articulista de vários periódicos maranhenses, em destaque o jornal Pacotilha, do qual chegou mesmo à direção.

“Poeta esparso, deixou uns quantos sonetos, de lavra rebuscada e métrica perfeita. Tive oportunidade de ler-lhe uns contos eróticos, ainda na flor da idade, aos doze, treze anos, que me serviram como incremento para fantasias de toalete.

Sucedeu-o Amaral Raposo, “um dos últimos abencerragens que enfrentam com denodo os sarrabulheiros do idioma […]. Enfant terrible… garoto levado da breca… Fascinado, desde jovem, pela grandeza do estilo ruibarboseano, tudo o que lhe tem saído da pena irrequieta e candente reflete, tem refletido sempre a influência do grande baiano” – é o que dele afirma Fernando Viana, que lhe deu as boas-vindas na Cadeira 37 desta Casa.

E é, outra vez, ao filho de Fernando Viana, a quem mais uma vez invoco, para falar da figura humana que fez companhia inesquecível a muitos dos presentes, mas a quem, por um lapso de geração, não cheguei a conhecer:

Depõe Waldemiro Viana: “A desenxabida revista de origem americana Seleções do Reader’s Digest, de leitura quase obrigatória em certa fase da vida de todos nós, sessentões, trazia um quadro fixo intitulado Meu Tipo Inesquecível, onde um escritor qualquer escrevia sobre alguém que o impressionara sobremaneira.

“Se eu tivesse que escrever nessa seção, o meu tipo inesquecível certamente seria o genial jornalista, poeta, articulista e – sobretudo – irascível gozador Amaral Raposo.

“Tenho-lhe, viva, na retina a imagem: meia altura, físico de antiatleta, era meio barrigudo, braços finos, amareloso, olhos esbugalhados, beiçola decaída a sibilar assobios completamente desafinados, cabeleira rareando e em perpétuo desalinho. Tinha por característica o hábito de emitir, após a ingestão da dose de conhaque usual, uma espécie de gorgolejo esquisito, que o identificava à distância.

“Humor cáustico, para cada situação tinha uma contundente crítica. Recordo-me de uma situação constrangedora por que passei, quando, aluno do 3º Científico do Colégio São Luís, fiquei entre dois fogos, por ocasião do lançamento de um livro didático pertinente à matéria, do meu professor de Português de então.

“Na apresentação da obra, esse professor cometeu a infelicidade de iniciá-la com a expressão: “Dos teclados de minha máquina…” Foi o quanto bastou para Amaral Raposo, impiedoso, num artigo de jornal, massacrar o pobre coitado, naquele seu humor ferino, a indagar quantos teclados terá a máquina desse mentecapto? E a dar-se ao trabalho de ler detidamente a obra, somente para criticar-lhe os erros gramaticais.

“E eu é que, em classe, suportava as diatribes do mestre, que tinha pleno conhecimento da minha amizade com o seu implacável crítico.

“Tocava um violão divino, mas uma execução sua geralmente gerava polêmica e descontentamento. Isso porque, perfeccionista, não admitia qualquer ruído externo, quando da execução de seus solos.

“Dispersivo, muito pouco ficou da obra do genial poeta de . Somente as piadas, blagues, observações cáusticas que o notabilizaram, e respostas prontas, que confundiam (ou desmoralizavam) o inquiridor… como, por exemplo, aquela dada a uma senhora, já um pouco além de balzaquiana, que o atormentava com insistentes elogios (o poeta era avesso a eles) e que, a certa altura, perguntou-lhe, coquete:

“- Quantos anos o senhor me dá, poeta?

“A resposta seca e um tanto ríspida:

“- Nenhum, dona: a senhora já tem muitos!”

Volto-me, por fim, a desdizer o que disse Afrânio Peixoto e repetiu José Sarney, que um acadêmico são dois discursos, o segundo dos quais ele não poderá mais ouvir. José do Nascimento Morais Filho marcou de tal modo a sua passagem pelo cenário maranhense da segunda metade do século XX, que é difícil o imaginarmos desaparecido, sem mais nem menos, de nosso convívio, sendo bom examinarmos se ele não se acha camuflado em meio a esta audiência, prestando atenção a este segundo discurso a seu respeito, conferindo palavra por palavra de seu sucessor na Casa à qual um dia ele voltou as costas para sempre.

A seu modo, ele também terá sido “um garoto levado da breca”, podendo intuir-se, quase, venha esse timbre a firmar-se como identidade da Cadeira 37 neste carrancudo Cenáculo da Inteligência Maranhense. Um “aloprado”, não tivesse essa palavra sofrido a deformação semântica causada pela apropriação indébita de sentido que dela fez o presidente da República. Se não – com a única exceção de Graça Aranha, no famoso episódio de sua conferência na Academia Brasileira, em 1924 -, de qual outro “aloprado” há notícia de rompimento com uma Instituição que, para não poucos, é a capa, ou a carapaça, com que se cobrem e se escondem em sua espera e passagem para os umbrais da imortalidade?

Na Igreja do velho regime, o gesto supremo de coragem para o sacerdote era atirar a batina às urtigas, abandonar as obrigações sagradas do culto. À moda antiga, o homem de Deus tornado aos hábitos de simples cidadão era apontado como apóstata, palavrão mais pesado que o de herege ou cismático, denúncia de infidelidade pública e permanente, defecção imperdoável, tipo especial de sacrilégio equivalente à morte em vida, e o qual dificultava por demais – se não mesmo impossibilitava de todo – os atos e práticas da vida comum: contrair matrimônio, exercer uma profissão, ser aceito em sociedade.

De que outra imagem poderemos nos valer para, em comparação, pesar e medir a “aloprada” coragem de Nascimento Morais Filho, quando se arrebatou do propósito de largar para sempre a companhia de seus pares na Academia Maranhense de Letras? A apostasia era um absurdo na teologia do catolicismo. A renúncia continua sendo um absurdo na metafísica das academias. Ainda hoje diz o Regimento desta Casa, em seu art. 46: “É perpétuo o título de acadêmico.” E mesmo com a vigência da Constituição de 1988, cuja garantia de liberdade associativa obrigou a reescrever-se a norma interna acadêmica, eis o que foi acrescentado ao caput de referido artigo:

“§ 2º O acadêmico que renunciar […] terá seu nome excluído de todos os registros da Academia, passando a figurar como período de vacância aquele em que pertenceu à Instituição.

“§ 3º Verificada a hipótese prevista neste artigo, será considerado antecessor do novo acadêmico eleito o antecessor imediato do que houver renunciado.”

Decreta-se nesses parágrafos a sentença de morte do acadêmico, medida decerto copiada dos regulamentos militares, pois só nos quartéis se encontrará paralelo a tamanho rigor, quando alguém é expulso de suas fileiras.

Observe-se que, para melhor análise, estamos distinguindo e separando os atos do fato: a renúncia e a causa da renúncia. A renúncia foi uma demonstração livre, consciente e voluntária de estoicismo suicida. Mas, para Nascimento Morais Filho, foi a pena de prisão perpétua para garantir a própria liberdade. Essa, a causa remota de sua drástica decisão. Ele disse em um de seus livros:

liberdade

foi o que a natureza programou para o meu ser:

– a ordem

a que obedecem as minhas células.[3]

E mais adiante:

limpei com o povo

a minha consciência!

com o povo

tonifiquei meu ser!

agora, canto:

– liberdade! liberdade! liberdade![4]

Não importando esmiuçar-se nenhuma causa remota da ruptura de meu antecessor com a Academia, transpareça, ao invés, a motivação imediata que lhe acendeu razões para isso: o capricho por assegurar à velha Confraria a essência de sua pureza genética. Que o sacrifício de José do Nascimento Morais Filho assim seja visto e assim se guarde como lição pelos tempos a vir. A esta centenária Oficina convergem homens e mulheres que, bem ou mal, forcejam, sobre tudo e primeiro que tudo, pela expressão artística através da escritura. Mais que simples diferença específica no quadro genérico dos que malham a palavra na forja de seu labor cotidiano, é esse o seu apanágio supremo. Elevando-se a tal plano a vigilância dos guardiães desse templo, não há confundir-se zelo com prurido, ou escrúpulo com teimosia. A pedagogia dessa cláusula pétrea foi legado e é cobrança deixada pelos Doze Fundadores, conforme deduzimos pelo exemplo de Antônio Lobo, no relato de Carlos Gaspar, já mencionado.

Mas não foi sem exercitações antecedentes que a trajetória de Nascimento Morais Filho culminou com a sua morte neossocrático-acadêmica nesta outra velha Atenas. “Eu sou um lutador”. A frase tantas vezes repetida por seu ilustre pai e que até ontem líamos colada ao busto daquele grande jornalista, na Praça do Panteon, a seu filho também é repassada, através da bagagem cromossômica, como súmula de sua agitada biografia.

José do Nascimento Morais Filho nasceu em São Luís, a 15 de julho de 1922. “Sua forte vocação de agitador de idéias” – eu repito palavras de seu primo Jomar Moraes – “revelou-se muito cedo, quando, na liderança de um grupo de jovens e com a participação de figuras consagradas da cultura maranhense, fundou e dirigiu a Centro Cultural Gonçalves Dias, sem dúvida o mais importante movimento cultural de São Luís na década de 40”,[5] de que fizeram parte Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi, Lago Burnett, Dagmar Desterro, Vera Cruz Santana, José Filgueiras, José Bento Nogueira Neves e outros mais.

Fala um de seus colegas daquelas priscas horas, Lago Burnett: “Sempre considerei Zé Morais e Bandeira Tribuzi os polos fundamentais de nossa geração. Morais nos ensinou a cultivar os clássicos; Tribuzi, sem desprezá-los, nos acenou com a viabilidade de novos rumos. Mas ambos tinham, e ainda têm, a visão social do caso literário. Ambos sabiam e sabem que não se faz literatura sem povo, porque, em última instância, é para o povo que a arte se destina e é do povo que ela nos chega, em estado bruto.”

A formação desse líder haverá de ter sucedido de forma tumultuária como o correr de seus dias. A exuberância de seu espírito não lhe terá deixado tempo e paciência para a realização de estudos intensivos, sistemáticos e aprofundados em qualquer campo de saber. Em mais de um de seus livros, ele mesmo deixa esculpido o próprio perfil intelectual: “Por natureza, formação e tradição de família: poeta, prosador e professor. / Por acaso: Fiscal de Rendas do Estado do Maranhão – função que também, ‘por acaso’ fê-lo encontrar e conhecer o outro Nascimento Morais Filho: o folquelorista” [sic, sistematicamente].

Sua obra versificada compreende: Clamor da hora presente, que, da estréia em 1955, chegou a quatro edições, até 1992; Azulejos, de 1963; e Esfinge do azul, de 1972 e 1996, títulos todos extraídos na capital maranhense. Considerada sob a mira da eternidade, como o deverá ser a partir de agora, e vista em conjunto, será produção que não convida a uma aposta de permanência: é obra de leitor de poesia, criação ao rés da palavra, palavra ao rés do chão, ademais de tributária de intenções que suplantam a realização poética, tais como a retórica do libelo político e a denúncia engajada. Sabe-se o quanto é difícil escapar a esse ardil, sobretudo nos tempos de juventude, e quando se luta e se labuta em esquinas miseráveis do Planeta, onde muitas vezes se pratica a literatura com intenção de tocar fogo no mundo. Mas também é sabido que a poesia comprometida – particularmente a poesia de partido – exige uma sobrecarga inventiva apenas alcançada por raros poetas de alto nível: Castro Alves, Maiakowski, Neruda, Gullar. Pois não basta a emoção: é necessário que a emoção seja recolhida em silêncio – lembra-nos há quase dois séculos o crítico inglês.

Ouçamos, a propósito, uma voz que veio de longe, na qual palavras de entusiasmo e estímulo entremeiam-se à percepção sincera – sempre respeitosa e amigável – sobre os versos de meu antecessor: “Acabo de receber o seu livro Clamor da hora presente e muito agradeço ao amigo” – escreve-lhe da Bélgica Gaston-Henry Aufrère (Carta de 1.10.1955). – “Li os seus poemas com muito prazer, porque eu [também] sou poeta d’avant-garde que não fica indiferente ao andar das castas laboriosas do mundo. Saúdo no meu amigo um jovem poeta do povo, um desta falange dos escritores progressistas que tem a coragem de suas idéias e escreve a sua mensagem em nome do povo e dos trabalhadores, espoliados pelos capitalistas. […] Talvez a poesia de meu amigo não tenha sempre o vôo sublime que convém. Não importa! O que conta é a idéia!” E noutro lugar, depois de afirmar que o nosso Zé Morais levanta o seu Clamor “em trombeta épica”: “Quando a poesia de Morais Filho estiver purificada de algumas banalidades e lugares comuns, haverá de estar no nível da de um Maiakowski e de um Ritsos, e o Brasil terá um grande poeta.” [6]

Podemos adivinhar o que responderia o destinatário de tal mensagem a seu correspondente e a todos os demais leitores: “Prefiro ser o último, sendo eu, a querer ser o primeiro, sendo outro” – é esse um de seus Pensamentos, colhido em lista do livro Esfinge do azul.

Versos de Nascimento Morais Filho serviram de letra para a música de compositores como Ribamar Fiquene, Antônio Vieira, Lopes Bogéa e José de Ribamar Passos (Chaminé), mistura intersemiótica que certifica, de per si, seu desejo de ser simples e direto, no intuito de alcançar o ouvinte comum, deixando à vista o quanto seus escritos se entendem com a linha da oralidade.

E foi essa preocupação com a oralidade, com auscultar o coração de sua gente e com ele sintonizar-se, que o levou à cultura popular. São de sua lavra neste campo: Pé de conversa, de 1957, O que é o que é?, de 1972, e Cancioneiro geral do Maranhão, 1º v., 1976. Seu entusiasmo pelo folclore o fez conceber projetos grandiosos, não realizados: uma Enciclopédia do Folquelore [sic, sistematicamente] Maranhense, um Cancioneiro geral do Maranhão, de que saiu, em 1º volume, uma coletânea de nossas quadras poéticas tradicionais, apanhadas de antigos periódicos e da voz do povo, trabalhos que, no tocante à sua terra, ele pretendia corressem em paralelo ao empreendimento de Câmara Cascudo para todo o Brasil.

Sua atividade multifária o fez pesquisador muito a seu modo, sem maiores desvelos metódicos e com a indisciplina própria de seu temperamento. Por seu esforço em procura de papéis velhos do passado maranhense, fez reeditar o livro A metafísica da contabilidade comercial (1986), de Estêvão Rafael de Carvalho, e o jornal O Bentevi (1986), indispensável para quem se dedique a rastrear a história da Balaiada. Muito especialmente, o Maranhão e o Brasil lhe ficarão para sempre devedores por ele haver ressuscitado o nome de Maria Firmina dos Reis, promovendo-lhe a edição fac-similar do romance Úrsula e fragmentos de outros escritos da notável escritora conterrânea. Como acontece, compreensivelmente até, com muitos estudiosos que exageram na paixão por seus achados, Nascimento Morais Filho sobrevalorizou o próprio feito. Por sua singularidade e seu pioneirismo, Maria Firmina dos Reis há de constar necessariamente na história da cultura maranhense, na sociologia de nossas idéias, de nossas práticas sociais, e não bem de nossa literatura. “Poetisa medíocre e ficcionista desimportante” – a avaliação é de Jomar Moraes – “Maria Firmina ds Reis não tem, mesmo nos limites da literatura maranhense, a significação que recentemente pretenderam atribuir-lhe”.[7]

Mas quem, tendo vivido no Maranhão da década dos 80, desconhece o movimento insistente, resistente e renitente, que foi o Comitê de Defesa da Ilha de São Luís? Difícil inventar iniciativa mais ao gosto de José do Nascimento Morais Filho, de sua opção ideológica, pela qual ele cresceu, sobrepujou-se de suas humanas proporções, agigantou-se como paladino da causa ecológica, da qual, àqueles tempos, mal se tinha notícia. O gigante assim constituído vestiu-se em pele de leão e deitou a sua ira sobre o deserto de nossa indiferença. O poeta arrebatou-se em fúria de profeta, passou a alimentar-se de gafanhotos, voltou-se furibundo contra uma poderosa multinacional e contra o governo que lhe fazia concessões, no mínimo, desnecessárias e descabidas. E não esqueçamos que ainda andava em vigência o governo fechado do Regime Militar. Nada o intimidava. Ele soube arregimentar adeptos, sobretudo entre os mais jovens, atacou, foi contratacado, fez comícios, passeatas, manifestos, bradou aos quatro ventos, bateu às portas dos tribunais, e, perdendo, sagrou-se campeão. Não importa se quase três décadas depois, parecem demasiadas ou infundadas as suas invectivas, se a indústria pesada que ela pesadamente acusava tem ganho até prêmios internacionais por seu cuidado no manejo ambiental em São Luís. Perguntemos: como seriam as coisas, se tão veemente não houvesse sido o seu protesto? Chuvas de ácido sulfúrico não caíram ainda sobre a velha Upaon-Açu, graças a Deus. Mas o que poderia ter feito uma grande empresa cujo objetivo maior e primeiro que todos é o lucro, e a qual demos tudo ou quase tudo, se o brado de Nascimento Morais Filho não se cristalizasse no tempo e no espaço, levado em eco pela viração que sopra nesta Ilha sobre nossas cabeças e nossas consciências, advertindo-nos que, também no plano ecológico, o preço da liberdade é a eterna vigilância?

Grande Zé Morais! Que responsabilidade a minha: refazer os laços que rompeste com a tua Casa, Casa da família Morais, de teu pai, de teu irmão, de teu primo, reunir-te aos teus pares, que tanto ganharão por teu convívio… Reavivar e reviver os teus ideais de liberdade, manter aclamada e acolhida a causa pela qual tanto te empenhaste. De onde estiveres, assiste-me, dá-me as forças que tiveste, para que eu também me agigante a mim mesmo e seja fiel a teu compromisso.

Em minha toada de chegança a este recinto lembrei meu pai. Permitam-me agora que eu a encerre, prestando homenagem à outra pessoa, uma das quais mais quero bem nesta vida. Dona Clarice Pinto Haickel, minha mãe que completa exatamente hoje 80 anos, – idade que não acredito poderei alcançar – e essa é a razão de eu haver escolhido esta data para oficialmente ingressar neste templo sagrado.

A cerimônia desta noite é o presente que um filho deposita jubilosamente nas mãos de sua mãe, porque a ela lhe pertence, todo, inteiro.

Mãe, meu presente para ti, nesse teu aniversário, é a honra e o reconhecimento que homens e mulheres da Academia Maranhense de Letras demonstraram a teu Jotinha por eventuais méritos seus. Méritos, se os tenho, devo-os ao Deus, que me ensinaste a honrar e respeitar, e depois dele, a ti, mais que a ninguém, pois tudo que sou, tudo que alcancei nessa vida, devo a ti. Ao que me ensinaste, ao que me possibilitaste aprender, as cortinas e portas que abriste para que eu pudesse ir, sem jamais me distanciar de teu carinho e de teu amor.

Que presente poderia dar para alguém que fez tudo por mim. Que além de me fazer por amor a um homem, me criou, quase que a sua imagem e semelhança?

Eu cresci, sou grande, mas todo esse meu tamanho é pequeno para conter o amor e a gratidão que tenho por te, pois de nada adiantaria as oportunidades que meu pai me proporcionou se não viesse junto com elas a tua doçura e a tua bondade.

Poderia continuar aqui falando a noite toda, as mesmas mil e uma noites em que lias para mim, antes de dormir. Se mais não falo, é porque a emoção não me deixa – e porque emoções oceânicas não cabem no estreito estuário da palavra.

Por fim, mesmo incorrendo em blasfêmia, tenho certeza que meu bom e misericordioso Deus me perdoará por mais isso … “a te, toda honra e toda a gloria, agora e para sempre…”


[1] Jomar Moraes, Apontamentos de literatura maranhense, p. 14.

[2] Amaral Raposo, Revista da AML, ano 8, v. 19, jun-1998, p. 85.

[3] Nascimento Morais Filho, Esfinge do azul, p. 89.

[4] Idem, ibidem, p. 91.

[5] Jomar Moraes, Perfis acadêmicos, 3ª ed., p. 108.

[6] Gaston-Henry Aufrère, Le Thyrse – Revue d’Art e de Littérature – IV série, mai 1956, nº 5, in Esfinge do azul, p. 18.

[7] Jomar Moraes, Apontamentos, cit., p. 136.

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A verdadeira imortalidade.

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Na última quarta-feira, durante a sessão ordinária da Assembléia Legislativa do Maranhão, usando o tempo do grande expediente, espaço destinado aos mais longos e mais importantes pronunciamentos, o deputado Edivaldo Holanda proferiu discurso com o qual além de fazer uma maravilhosa surpresa, também me deu um presente único, como jamais tive a honra de receber anteriormente.

Ele pediu a palavra e se pôs a fazer a narração de minha pequena e modesta biografia, tanto no campo político, quanto no setor cultural.

Fez isso motivado pelo fato de eu ter sido eleito no dia 2 de julho último para a Academia Maranhense de Letras, onde passei a ocupar desde o último dia 2 do corrente a cadeira de número 37, que tem como patrono Inácio Xavier de Carvalho, e na qual tiveram acento Ribamar Pereira, Luis Viana, Amaral Raposo e mais recentemente José do Nascimento Morais Filho.

Edivaldo ia falando e eu ia vendo passar em minha memória as coisas que ele dizia, como se fosse um filme.

Junte a emoção que eu já sentia, a aquela resultante do fato de eu e ele estarmos nos notabilizando por nossas pelejas nas tribunas da Casa de Manoel Beckman, ele como líder da oposição e eu como vice-líder do governo, ele defendendo suas idéias e eu, as minhas. Isso por si só, já era o bastante para fazer com que o filho de Alexandre Dumas que há em mim, alimentado pelo sentimento de nobreza e honradez que unem adversários leais, se sentisse motivado, se sentisse revigorado da constante cobrança, da excessiva pressão que a lide política nos impõe.

Edivaldo ia falando coisas que pareciam desfilar em minha frente. A sensação que me dava era que se eu esticasse o braço seria capaz de tocar com os dedos todo aquele passado que ele relatava.

Falou de meu pai e de minha mãe. Falou do Guarnicê, do meu primeiro mandato de deputado estadual, quando tinha apenas 22 anos, quando fomos colegas pela primeira vez. Falou de quando também juntos, fizemos parte da Assembléia Nacional Constituinte. Lembrou que fui o relator da emenda do deputado Amaral Neto que estabelecia a pena de morte em nosso país, para a qual eu dei parecer contrário, rejeitando tal medida. Falou dos livros que escrevi, dos filmes que realizei, dos prêmios que ganhei.

Edivaldo no entanto, não poderia imaginar o que viria acontecer com o seu discurso. Na proporção que ele falava, nossos colegas deputados iam se enfileirando nos pedidos de apartes. Sucederam-se Pavão Filho, João Batista, Graça Paz, Jura Filho, Carlos Braide, Eliziane Gama, Helena Heluy, Carlos Alberto Milhomem e por fim Rigo Teles.

Os colegas foram muito simpáticos e elegantes para comigo, muito gentis e carinhosos. Mas dentre todas as falas, uma me causou profunda emoção, fazendo com que eu chegasse mesmo às lágrimas. O que disse a deputada Eliziane Gama fez com que um profundo nó se instalasse em minha garganta. Ela enxergou não apenas o empresário, escritor, o cineasta, o político. Ela colocou seus olhos sobre um outro Joaquim, a pessoa. Aquele que é base e sub-base dessa estrada que trilho e palmilho em busca de minha coerência.

Eliziane foi se lembrar de um episódio distante, acontecido há três anos. Ela se desentendeu com um colega deputado, ficou muito abalada com aquilo e eu fui conversar com ela, tentar fazê-la entender o que havia acontecido, confortá-la. Ocorre que eu não me lembrava desse fato, e foi exatamente por isso que me emocionei, pois naquele instante tive certeza que havia aprendido uma velha lição ensinada por minha mãe: fazer o bem sem olhar a quem e se esquecer, para não ficar esperando reciprocidade. Simplesmente fazer o bem e pronto.

Ao ir buscar tão profundamente esse outro Joaquim, também citado levemente por Edivaldo, Eliziane fez com que a homenagem feita a mim se coroasse com êxito total.

Aconteceu também um outro fato relevante naquela mesma sessão. Alguém que não é parlamentar, aproximou-se de mim e disse que queria me dar um abraço. Era Alda, a minha primeira secretária, que hoje é funcionaria da presidência da Assembléia. Ela me abraçou e me disse que estava em sua sala e ao ouvir o que dizia Edivaldo e o que disse Eliziane, desceu para dizer-me que havia uma coisa que ela sentia, mas que não sabia como se expressar. Disse que só sabia como fazê-lo. Disse que agora entendia por que mesmo não mais trabalhando diretamente comigo, ainda assim se sentia muito próxima, muito ligada: “É porque o senhor, antes de ser deputado, ou empresário, ou escritor, o senhor é gente, e continua a ser o mesmo, igualzinho quando o conheci em 1983. Franco, direto, incansável, responsável, bem humorado…”

Quando as pessoas, ou pelo menos quando uma dentre elas, não importando quem seja, conhece você, reconhece você, guarda você na memória, tem você como parâmetro, isso é ser verdadeiramente imortal.

Deputado Estadual e membro das Academias Maranhense e Imperatrizense de Letras

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