Um Pedaço de Ponte – Parte VII

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Dando continuidade ao texto “Um Pedaço de Ponte” leia a seguir: 

As moças do Curralzinho e os rapazes do Pau Furado

Intonce, a festa do São Francisco vai ser mesmo amanhã, Didico?

É… é o que dizem!

Festa do interior como outras, propaganda de boca em boca, de roça em roça, de lombo em lombo.  Arrastada pelos cascos dos burros e mulas dos tropeiros e vaqueiros.  Discutida nas quitandas dos povoados mais distantes, ponto de encontro obrigatório de todos que apreciam dois dedos de prosa e um palmo de cachaça.

– Dizem até que o candidato a prefeito vem juntamente com sua comitiva veriante!

– Vai mermo ser uma lindura.

– Calma, dona Evilásia, nem precisa ser tanto.

Licuteíra de muito respeito e falares, dona Evilásia só competia com dona Eufrásia, esposa de seu Coriolano, da farmácia do Pau Furado.  Viúva cheia de filhos, principalmente filhas, residia há muitos e muitos anos no Curralzinho, onde possuía uma quitanda das mais sortidas por lá.  Tinham de tudo suas prateleiras, sobretudo cachaça e tiquiras de variados lugares, desde a Aliança, de Cururupu, pingas de Chapadinha, do Pindaré e Viana, tiquira de São Bento, até a Sete Sementes, de Sergipe.

Seu Coriolano, coitado… santo homem, o seu Coriolano.

Só o fato dele viver com aquela jaca de bago mole… Dona Eufrásia, Mãe Santíssima, é de tontear, no que, também, só competia com dona Evilásia.

– Bom dia, seu Coríolano Como tem passado? -Assim, assim.  E a senhora, dona Evilásia, como vão suas filhas?  E os meninos?

– Vamos todos na paz de Deus.

Nisso dona Eufrásia intervém com desprezo e nojo.

– Oh!  Coriolano, no Curralzinho todos passam muito bem, principalmente as véia e as moça.  Assanhadas como elas só!

– Oíe aqui, sua galinha choca, fique sabendo que as minha fia não precisa de andar atrás de home porque elas têm belezura e inteligênça de sobra e não são como certo mondrongo que só véve drumindo e bodejando.

– Sua quitandeira safada, não fale assim dos meus meninos…

– Oíe, seu Coriolano, me adiscurpe, mas vim aqui só comprar uma caixa de som-ri-sá pru mode colocá lá na quitanda, mas como essa coisa chegou agora aqui… pode até ter contaminado seus remédio.

– Mas..

Seu Coriolano tenta acalmar, mas dona Evilásia sai a toda.

Coitado de seu Coriolano, além de ser ele o dono da única farmácia de Pau Furado e povoados vizinhos, ainda tinha que aturar dona Eufrásia e, de quando em vez, dona Evilásia também.

Depois daquela tarde de sexta-feira, depois do bate-boca das duas, ninguém mais acreditou na possibilidade de paz entre elas.

O São Francisco fica a meio caminho entre Curralinho e Pau Furado.  Como não podia deixar de ser, todos iriam à festa, na casa de Toninho Pé-de-Forró e, como cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, as recomendações se cruzavam como setas no ar.  Em Curralinho, dona Evilásia recomendava a suas filhas que não falassem ou dançassem com os filhos de dona Eufrásia ou qualquer um dos homens de Pau Furado.  Doutro lado, Dona Eufrásia dizia a seus rapazes que evitassem as moças de Curralzinho, principalmente as filhas de dona Evilásia.

E foram todos para a festa.  Foi gente de São Pedro, São Paulo, São Felipe, São Tiago, Refúgio, foi gente de Juçaral, do Rumo, gente de todo o município, assim como gente, também, de Curralzinho e de Pau Furado.

À frente da casa de Toinho, testada bem limpa e varrida, toda raspada de enxada para evitar os tropeços de alguma pedra restante, era uma trançada só de bandeirinhas de papel de seda e crepom, que as moças estufavam com os dedos e assim se arredondavam como se fossem balões.  Uma carreira de palmeiras de ariri de um lado, outra do outro.  Nunca se tinha visto nada mais bonito: a filha mais velha de Toinho, que já conhecia cidade grande e vira festas por lá, apanhou uma porção de flores que encontrou na capoeira que ficava por trás da casa e, com elas e alguma folhagem, impor visou grossos buquês para amarrar em cada pé de ariri.

Toinho teve que ir longe para contratar a radiola acoplada a um conjunto de baterias, devidamente carregadas e algumas sobressalentes, para o caso de uma ou outra falhar. Em Pinheiro, havia uma que se ligava a um pequeno dínamo, acionado por um motorzinho a gasolina, mas o dono queria 50 mil cruzeiros para tocar uma noite até o meio-dia seguinte. À porta, ele iria cobrar só 300 por cabeça: Toninho esperava de 180 a 200 pessoas.

O povo começou a chegar por volta das 5 da tarde, viajando a cavalo, de burro, bicicleta ou a pé, todo o mundo disposto a beber e dançar a noite toda.  Cada qual trazia suas roupas e suas coisas, se escondia no mato para trocar-se, mas todos se banhavam no riacho que passava bem ali, perto da casa.  Uns traziam matalotagem – um pedaço de carne assada, galinha frita e bastante farinha.  Outros jantavam mesmo em casa do dono da festa, que tinha de ter fartura de frango e carne de porco.

– Rápido, Nastácio, calça logo essa butina, home!

– Calma, não afoba.  Acho que calcei os pé trocado, pôrra!

Tudo corria bem, a radiola a tocar tão alto que se ouvia de um lado a outro do sítio.  As moças mais saídas tomaram a iniciativa e começaram a dançar com os rapazes que já conheciam, umas com as outras, arrastando sapatos e sandálias no chão, do jeito como sabiam, do jeito como podiam.

Lá pelas tantas, Eufrásia e Evilásia se cruzavam na pequena sala da frente, à porta que dava para a cozinha.  Outro bate-boca começou e logo eram empurrões pra cá, tapas pra lá, pontapés e puxões de cabelo, de um lado e de outro, que se misturavam e confundiam com o grito apavorado das mulheres.

– Ei! Cuidado!  Pára com isso!

Se conversa puxa conversa, briga puxa briga.  Valfrido havia pulado no meio do terreiro com uma doze na mão e lá distribuía socos e panadas a torto e a direito, como se, de súbito, houvesse sido tomado pelo espírito do cão. Daí a pouco, o terreiro se transformava numa terrível confusão de gritos e pescoções, enquanto Toinho se esforçava para acalmar a uns e a outros e, nesse afã, ia dando igualmente suas porradas, socos e pontapés.

– Gente, vamos acabar com isso!  Droga, estamos aqui para brincar

– Cala a boca, seu filho da puta!

Tudo, afinal, por causa de Tonica, que estava dançando com um molecote que morava na sede do município, e Valfrido não queria, pois achava que só podia dançar com ele.

Tonica.  Tonica livre.  Tonica desabusada e mandona, que só fazia o que desejava e não ouvia ninguém – era uma cabocla bonita e sestrosa, um rosto lindo de garota num corpo bem-feito de mulher.  Morava numa casa construía por muitas mãos para ela, gente à qual ela se entregava com igual desejo e cada vez com maior ardor.  A casa fora, desse modo, construíra só de amor, que era o troco dos favores de seu corpo.  Rufino cobriu, Anastácio e Ciriaco taparam, Valfrido deu as portas e as janelas, e Jovino, candidato a Vereador, deu a cama e a mesa.  Dizem que Tonica foi sempre tão amorosa e diferente, que até de Favinha, que dizem que era mulher macho, ela recebeu ajuda.

Mas Valfrido estava lá no meio do terreiro com a peixeira na mão, e Tonica ainda dançava com Fabrício, o rapazote da sede do Município.

Aos berros, Toinho Pé-de-Forró manda parar a radiola. – Pára, pára essa pôrra!

Quando a lambada parou, o silêncio tomou conta de todos os ouvidos.

Somente Valfrido ainda dançava aos pulos com a faca na mão, querendo matar Tonica e quem dela se aproximasse.

Alguém tinha de tomar-lhe a faca.  Seu Coriolano pediu. – Não dou não, e sai de minha frente, seu Cori.

E rumou para o velho Coriolano.  Foi aí que se aproximou Tonica de mão dada com Fabrício.  Valfrido parou, olhou, gritou, chorou e, quando ia cravar a peixeira na mulher, Pedro de Zenaide pulou em cima dele e a luta começou.

Valfrido, um mulato de cabelo liso, e Pedro de Zenaide, um crioulo de cabelo seco, rolaram no chão como dois meninos de rua.  Não se sabia quem era quem, a única diferença era que um tinha uma faca e o outro só as mãos.  Em certo momento, eles se separaram e, agachados, um tenta furar, e o outro se esquivar.

Até que Valfrido atinge Pedro de Zenaide no bucho.

– Aaiii!

– Toma outra, Infeliz .. !

Anastácio, Juca de Mamede e Nezinho afinal conseguiram tomar a faca do agressor, enquanto Fabrício arrumava uma corda de rede para amarrar Valfrido, num pé de manga, próximo da casa.

Tonica observou inerte.  Olhando sem ver, branca como não era.  Depois de algum tempo foi também socorrer Pedro de Zenaide.  Daí por diante, ela se tornou mulher de um homem só, mas o povo ainda comenta que Favinha sempre lhe aparece quando Pedro não está.

A festa do São Francisco foi assim emocionante, de ninguém mais esquecer.  Evilásia e Eufrásia fizeram as pazes e dançaram juntas.  O candidato a prefeito compareceu e mandou abrir a porta, e todo povo votou nele.

A paz voltou a reinar no São Francisco, no Curralzinho, no Pau Furado e em todo o município.

Não, não, assim é querer demais!  Cinco meses depois, dona Evilásia notou que sua filha Maria Rosa enjoava constantemente e que lhe crescia a barriga com rapidez.

– Virgem Santíssima, meu Jesus Cristo, minha Nossa Senhora do Bom Parto, o que foi isso, Maria Rosa?!

– Foi no dia da festa do São Francisco, mãeinha, foi o Jacinto do Pau Furado.

Dona Evilásia nunca aprendeu a pronunciar o nome de seu povoado corretamente, escutem só.

Valha-me, nossa mãe!  Eu não te disse, Maria Rosa, eu não disse para todas vocês que as moças do “Currazinho não podia dançar nem nada com os moço do Pau Furado?

O casório de Jacinto, que por acaso é o filho de dona Eufrásia de seu Coriolano com Maria Rosa, filha de dona Evilásia e do finado Chico Peba, foi no dia de São José. 

PS: Escrevi este conto durante a campanha política de 1986, numa viagem que fizemos para cidade de Pinheiro. Estávamos eu, meu pai, Nagib Haickel, falecido em 1993, e meu motorista, José Moraes Neto, Falecido no último dia 18. O mais curioso é que parte dessa história é um “causo” que me foi contado naquela ocasião, o resto foi baseado no que vi numa festa em que fomos.  

3 comentários para "Um Pedaço de Ponte – Parte VII"


  1. maria

    Joaquim,

    Se não foi um acontecido de fato, você me enganou direitinho porque me parece muito real. Tenho certeza que precisa de vivência nesse tipo de ambiente, com gente desse tipo de lugar para conseguir escrever de forma tão convicente. Não é à toa que você será empossado o novo Imortal da Academia Maranhense de Letras esta semana. Parabéns!

  2. mario

    parabens dep joaquim fui longe com sua causo muito bom.

  3. anônimo

    Não conhecia os seus dotes literários, já havia ouvido falar mas de certa forma não acreditava, achava que era mera propaganda, marketing, valorização de sua imagem, mas vejo que não é nada disso, esse seu conto é muito bom, uma pequena obra de arte. Nos faz viajar, nos transporta para o São Francisco, naquela noite na casa do Toinho.

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