O regatão de Nagib Arraes
Outro dia meu irmão Nagib foi me visitar. Ficamos vendo TV e conversando, eu deitado na minha rede, ele na cama ao lado, até que acabamos por cochilar.
A televisão ficou ligada. A minha, fica ligada durante o tempo em que eu estiver no quarto. Durmo com ela ligada todas as noites. Ela serve de abajur e de regatão eletrônico. Deixe-me explicar. Regatão era como meu pai e meu tio Zé Antonio, chamavam o costume que tinham alguns chefes de família de Pindaré em colocarem velhos contadores de estórias sentados em volta das redes, nas varandas das casas, para contar-lhes causos até que eles pegassem no sono.
Vez por outra se um contador parasse a narrativa pensando que o ouvinte já tinha adormecido, era comum o sonolento reclamar: Ta pensando que eu vim pra cá foi pra dormir, cabra? Vim pra cá foi pra ouvir estória… E trate de contar uma nova que essa aí eu já conheço. Todos riam e o contador se esmerava em reinventar uma velha estória de tal maneira que ela parecesse uma estória nova.
Era assim que aconteciam as bocas de noite naqueles tempos em Pindaré, que foi o município do Maranhão que mais recebeu imigrantes entre final do século XIX e o comecinho do século XX. Este fato se deveu a implantação na sede do município, por ordem de D. Pedro II, do Engenho Central São Pedro. Como quase a totalidade dos imigrantes estrangeiros que chegaram por aquelas bandas era de libaneses, daí que, o costume do regatão foi a forma que nossos antepassados encontraram para fazer no vale do Pindaré as mesmas reuniões em torno das fogueiras, que eles faziam no vale do Bekar.
Mas os regatões já aconteciam há muito tempo, nas viagens dos navios gaiolas que faziam o transporte de mercadorias e passageiros, pelos rios da região. Passageiros que iam acomodados em redes pelo convés da embarcação.
Mas voltando ao nosso regatão eletrônico. Lá pelas tantas, despertei e vi que Nagib continuava dormindo. Uma das características de nossa família é termos um sono que não se abala nem se incomoda com a incidência de som ou de luz. Mesmo assim, silenciosamente, peguei o controle remoto e dei uma zapiada pela SKY para ver se havia algo interessante a ser visto ou mesmo revisto. Parei no canal Brasil, onde estava passando um documentário sobre Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco e um dos mais importantes políticos de nosso país dos últimos anos.
No começo ainda estava meio sonolento, mas aos poucos fui pegando o pique do documentário, que a cada minuto mais me chamava atenção. Era como se não fosse o bravo povo pernambucano que estivesse falando de Miguel Arraes, mas sim, o povo do vale do Pindaré, falando de meu pai, Nagib Haickel. De repente olhei para meu irmão e me espantei ao ver que ele não estava mais dormindo. Ele, de olhos arregalados, me disse: estava aqui cochilando e ouvi uma frase que parecia ter sido dita por papai, abri os olhos e vi que quem a disse foi o Arraes, ai, não dormi mais, fiquei assistindo.
Ficamos os dois olhando o documentário ate o final. Para nosso maior espanto, Arraes empunhando um microfone, em cima da carroceria de um velho Fé-Nê-Mê, num filme que aparentava datar de pouco tempo antes dele ser cassado, em 1964, disse uma das frases que mais caracterizaram o discurso do deputado Nagib Haickel, caboclo do vale do Pindaré, acostumado a comer tapiáca e mandubé: o difícil se faz logo, o impossível demora um pouco mais.
Quando ouvimos aquilo, eu e meu irmão nos entre olhamos e abrimos uma estrondosa gargalhada. É que nosso pai que sempre foi tido como homem de pouca cultura e de menos letras, sem nunca ter sido de esquerda, sem nunca ter visto Miguel Arraes em toda sua vida, ainda assim tinha um repertório bem parecido com o dele.
Enquanto Arraes era endeusado pela esquerda, meu pai era chamado de reacionário, e os dois falavam ao povo usando as mesmas palavras, as mesmas frases, o mesmo discurso.
Eu e meu irmão rimos e imaginamos que seria essa a mesma reação de nosso pai se ele soubesse de tal fato. Ele simplesmente daria uma frondosa gargalhada e faria troça do acontecido. E não seria pra menos.
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