Por Expedito Moraes
Em sua origem tupi “pororoca” quer dizer algo como “causar um grande estrondo”. E foi esse o nome escolhido para nomear um dos mais impressionantes fenômenos da natureza, que ocorre quando o mar invade um rio na forma de uma grande onda que se choca contra a corrente fluvial, podendo atingir até quatro metros de altura.
Nas luas cheias e novas, as marés crescem bastante no Golfão Maranhense, chegando em alguns meses a alcançar mais de sete metros acima da lâmina de baixa-mar. De modo que invade o estuário do Mearim e avança furiosamente pelos rios Mearim e Pindaré, invertendo a corrente do rio. Nestas fases da lua, a velocidade da correnteza rio acima é muito maior, e permanece durante quase três horas, elevando a lâmina d’água até o cimo das barreiras. Principalmente, entre os meses de março e abril ou setembro a dezembro.
Nasci na margem direita do Rio Pindaré, no povoado Cachoeira, Município de Cajari. Do lado esquerdo é Viana.
Nessa época não existia assoreamento. As matas ciliares estavam perfeitas, o rio era altamente navegável, não havia estradas na região, e as lanchas de grande porte faziam o transporte de cargas e passageiros da cidade de Pindaré até São Luís, passando pelas demais localidades ribeirinhas.
Durante o inverno (período chuvoso), essas embarcações faziam tal percurso em 24 a 30 horas. No verão (período de estiagem), a viagem podia durar até 72 horas. E quem determinava esse tempo eram as marés, pois com o leito mais seco, os navegantes obrigavam-se a fundear em vários trechos para esperar a maré, até que esta elevasse a lamina d’água e evitasse o encalhe nas croas.
Ocorre que, quanto mais as embarcações se aproximavam do estuário, maiores eram as pororocas.
Lembro de muitos naufrágios e ameaças ocorridos quando eu ainda era criança. Havia um determinado lugar entre a Boca do Rio Mearim (local do encontro do Pindaré com o Mearim) e o Porto da Gambarra, chamado Malhadinha, que era o terror dos embarcadiços.
Fundear no Canto do Lago, local mais profundo com o canal passando junto às altas barreiras e mangueiros, já se tornara obrigatório. As embarcações eram amarradas com grossos cabos de manilha, com o ferro (âncora) arriado, para esperar a passagem da pororoca e poder atravessar a Malhadinha sem perigo.
Essa parada forçada durava de seis a oito horas. Rezava-se para que isto não acontecesse à noite, e, se fosse o caso, que não chovesse, e chovendo, que não fosse com trovoadas. E caso tudo isso acontecesse, que não fizesse frio. Imagine um cenário desse com as terríveis muriçocas, tão comuns nesses locais. Nem se podia abrir a boca. Quando o timoneiro da embarcação por imperícia ou imprudência não esperava a maré se encher nesse “fundiador” seguro e aventurava-se a atravessar a tenebrosa Malhadinha, corria grande risco de encalhar nas suas imensas croas ou bancos de areia, o que poderia redundar em naufrágio.
Ocorre que, esse pedaço do rio tinha o solo composto por um tipo de material que chamavam de “esmeril”, que transformava essas croas em areia movediça. Com o peso da embarcação, da carga (normalmente com 1.200 a 2.000 sacas de arroz e babaçu nos porões e por cima do convés), dos passageiros, animais e bagagens, corria um risco enorme de encalhar e ser tragada pela croa. À proporção que a maré baixava, a lancha ia sendo sugada e terminava ficando presa na croa.
O verdugo é uma peça de madeira forte que vai de um extremo a outro das embarcações, e, além de protegê-las de danos em choque com outros obstáculos, serve como limite entre o casco e convés. Quando a lâmina d’água ultrapassa essa peça é sinal de que a embarcação está com excesso de carga e corre perigo de ter seus porões invadidos pela água diante de banzeiros e pororocas. Da mesma forma, num encalhe desse tipo, é certo ter seu casco enterrado até à altura do verdugo. Isto é como uma sentença de morte – naufrágio certo.
Naquele trecho a Pororoca vinha com mais de cinco metros de altura e com uma força descomunal, de modo que alagava, e até emborcava, a embarcação, que, assim enterrada, pesada e imóvel, com a hélice e o leme presos na areia, não obedecia a nenhum comando.
Numa situação assim, restava esperar por um milagre. Wady Sauáia em “Cenas que Ficam”, proprietário da lancha Afife, assim descreve este fenômeno que ocorria no local: “Falo, então, para o Dizim que se encaminhe para o Corredor da Morte, pois queria ver se aquela onda se formaria da mesma forma que no dia anterior. Não demorou e bem a nossa frente avistamos um verdadeiro “Monstro” de água e espuma marrom que avançava furiosamente destruindo a margem e levando tudo que encontrava pela frente.” Esse era o cenário, e foi essa imagem que ficou também na minha memória. Não tinha como não sentir pavor.
É preciso registrar que, tanto na citação do autor como na minha, as lanchas estavam flutuando, e não encalhadas. Mas, mesmo assim era perigoso. Podia emborcar; no terrível choque do casco com a pororoca e as seguidas ondas “cavaleiros”, poderia sacar uma das tábuas do casco, passar por cima do porão, o que, caso não estivesse vedado por resistentes planchas e encerados, poderia enche-lo de água ou quebrar o leme, e a lancha ficaria à deriva sobre as ondas.
Pois, em 1956, foi exatamente com um “monstro” desse que, numa noite de lua nova, quando ela é maior, por volta das 19 horas a SARAFINA (em hebraico significa “aquela que protege o trono de Deus”) encontrou na Malhadinha, e “se perdeu”.
A lancha estava enterrada até o verdugo, imóvel e pesada, e a Pororoca passou por cima levando tudo que podia. A maré subia velozmente, a escuridão mais parecia um breu, e os passageiros subiram até o segundo toldo e começaram a queimar roupas na esperança de serem vistos por alguma embarcação.
Ocorre que, naquela época essa região era totalmente inóspita, ninguém habitava por ali. E, mesmo que tivesse alguém por perto, teria que dispor de uma outra embarcação capaz de abrigar os muitos passageiros e tripulantes.
Mas, milagres acontecem. Eis, que surge ao longe as luzes de uma embarcação. A correnteza era imensa. Todos queimavam as roupas, desesperados, porque, se demorasse muito, a água poderia chegar ao último toldo, e a morte seria certa. Mesmo para quem soubesse nadar, na escuridão, com a correnteza e água agitada, o nadador não saberia para que lado estaria a terra.
Porém, finalmente a embarcação se aproximou e conseguiu resgatar todos que estavam ali.
No dia seguinte, pela manhã, ficamos surpresos com o repentino desembarque no porto da nossa casa, dos muitos sobreviventes trazidos pela bendita lancha salvadora.
Todos foram aconselhados a ficar em nossa casa para esperar a lancha, da qual meu pai era o comandante, para levá-los aos seus Municípios.
Era desesperador. Alguns choravam, ainda apavorados. Outros, lamentavam as perdas, pois não conseguiram salvar nada. Outros, ainda, agradeciam a Deus por estar vivos. Os sobreviventes estavam com fome, sujos e sem roupas para trocar. Minha família fez rápida campanha para adquirir vestimentas para essas pessoas que ficaram só com a roupa do corpo.
18/03/2020