Por Roberto Veloso*
Como o primeiro abolicionista da pena de morte, por considerá-la cruel e ineficaz à prevenção geral, Beccaria insurgiu-se, de forma abrangente, contra as injustiças do Absolutismo, no século XVIII. Durante aquele período não existiam regras penais ou processuais seguras e o respeito à legalidade estrita. A lei penal era barbaramente instrumentalizada pelos detentores do poder, que se valiam do Direito Criminal para eliminar ‘inimigos’ ou enriquecer.
Beccaria escreveu ‘Dos Delitos e Das Penas’, defendendo o abrandamento das penas, com o fundamento de que ‘é necessário escolher penas e modos de infligi-las que, guardadas as proporções, causem a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens e a menos penosa no corpo do réu.’
Na visão do filósofo, era inconcebível uma sanção penal que impusesse ao transgressor um sofrimento cruel e desproporcional ao crime cometido e ultrapassasse o grau de necessidade de prevenção geral sendo que o castigo, nessa ótica, teria a finalidade de impedir o acusado de tornar-se prejudicial à sociedade e de afastar os cidadãos da prática criminosa.
Por influência desse pensamento, o artigo 8º da Declaração de 1789 prescreveu que a legislação só deve estabelecer penas estritas e necessárias, o que passou a constituir um dos alicerces do Direito Penal contemporâneo, tanto que o Código Penal brasileiro, por exemplo, determina, no art. 59, seja a pena fixada segundo o critério de necessidade e suficiência à reprovação e prevenção do crime.
A obra de Beccaria, baseada no Contrato Social de Rousseau, pregava, ainda, o princípio da legalidade e a exclusividade de o legislador estabelecer as sanções em matéria penal, o que foi igualmente observado no art. 8° da Declaração de Direitos de 1789.
Diz Beccaria que ‘só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão no legislador, que representa toda a sociedade, unida por um contrato social.’
O sistema de Beccaria se baseia em três princípios basilares: a legalidade dos crimes e das penas, a separação de poderes, e a utilidade do castigo, sendo a legalidade o princípio que fundamenta todos os demais. Seu pensamento forneceu as bases para a construção de uma Ciência Penal orientada para o estabelecimento das garantias do sujeito, ficando como principal herança deixada pelo filósofo o princípio da legalidade das penas e sua aplicação apenas quando necessário.
Manifestava-se, também, Beccaria, contra a crueldade das penas, afirmando que, embora os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e à finalidade que se lhes atribui, a de obstar os crimes, tal crueldade é inútil, para considerá-la então odiosa e revoltante, em desacordo com a Justiça e a natureza mesma do Contrato Social.
O professor Ricardo de Brito Freitas, eminente titular da Faculdade do Pernambuco, afirma que a ideia de Beccaria era a de que ‘se o homem cedeu uma parcela de sua liberdade natural através de um pacto, o fez para obter a segurança necessária à conservação da propriedade e de suas liberdades, por isso que o Estado enquanto produto do contrato social só pode punir o indivíduo na medida necessária à sua auto defesa e, conseqüentemente, à preservação dos direitos individuais.’
Trata-se de uma visão utilitarista segundo a qual se procura atingir, com a sanção penal, um efeito de prevenir a prática de crimes. Nesse sentido, Beccaria, o mais influente penalista do Iluminismo, afirma que o principal objetivo do direito punitivo é o de ser, acima de tudo, eficaz ao serviço do cidadão e da sociedade civil, pois sua existência visa, fundamentalmente, à segurança da comunidade.
Contrário, ainda à tortura nos processos, Beccaria enfatizou ser esse meio também inútil, porquanto o inocente, para escapar dos sofrimentos, admitiria a culpa, enquanto o responsável permaneceria isento de punição, caso os suportasse, concluindo, então, que a tortura é um meio de condenar o inocente débil e absolver o criminoso forte.
É relevante lembrar que, na época da publicação de Dos Delitos e das Penas, a tortura, oriunda da Inquisição, era largamente utilizada nos processos criminais, sendo abolida apenas em finais do século XVIII. Hoje, no ordenamento jurídico-penal brasileiro, ela é crime equiparado ao hediondo, previsto em legislação específica, atestando o acerto das palavras do filósofo.
*Roberto Veloso é Juiz Federal e professor da UFMA.