Por Cezar Brito*
O Judiciário, com as sua contradições e acertos que não cabem aqui aprofundar, se tornou o último responsável pela ratificação executória de toda política pública, federal, estadual ou municipal. A sua atuação fez definir a secular questão indígena, a autorização para as pesquisas com as células-tronco embrionárias, a quebra do monopólio da Petrobras sobre exploração e refino do petróleo, a amplitude da liberdade de imprensa, a proibição do nepotismo, a transformação do refúgio político em simples ato administrativo, a tortura em crime banal, a fidelidade partidária como impositivo constitucional, os limites legais e éticos das campanhas eleitorais e seus candidatos, o papel dos correios e das agências reguladoras, as restrições ao constitucional direito de greve, os tetos e pisos remuneratórios dos servidores públicos, as isenções fiscais ou legalidade dos tributos, o uso de algemas nas atividades policiais, a importância do direito de defesa, os confiscos salariais e milhares de outras.
Não custa lembrar que já consta da pauta do Judiciário a ratificação ou rejeição da política de inclusão social (quotas sociais ou raciais), os contornos e alcance da saúde pública, os investimentos em infra-estrutura (obras públicas, licitações), a política fiscal (inconstitucionalidade ou ilegalidade de tributos e incentivos) e a soberania do asilo.
E não se está falando apenas dos julgamentos relevantes, repercussões gerais, transcendentes ou repetitivas. A atuação do Judiciário se espalha perante as demais instâncias. Toda e qualquer decisão ou obra pública é exaustivamente fiscalizada, detalhada, comparada, checada, revisada, vistoriada e, não raro, escandalizada, denunciada e, finalmente, objeto de ação judicial. E os fundamentos das ações judiciais variados, desde a repetida questão da corrupção, passando pelos aspectos culturais, econômicos, ambientais, procedimentais, históricos, estéticos ou outro item isolado ou coletivo.
O certo é que tudo e todos se submetem a essas análises, desde a construção de uma praça, a abertura de uma rua ou uma rodovia, a edificação de um açude, uma barragem ou o represamento de um rio. É quase impossível encontrar uma ação política sem um questionamento judicial sobre a sua validade, não raro gerando a sua paralisação ou na ameaça da criminalização de seu executante.
Não se pode apontar a motivação ou o momento em que o fenômeno da judicialização das políticas públicas surgiu no Brasil. Tampouco se pode afirmar que ela fora arquitetada deliberadamente por algum grupo interessado na preservação de sua hegemonia política. Ernani Rodrigues de Carvalho atribui a judicialização ao sistema político democrático, a separação dos poderes e ao exercício dos direitos políticos, acrescendo, ainda, o uso dos tribunais pelos grupos de interesses e, por último, a inefetividade das instituições majoritárias”.
Os professores Alexandre Garrido da Silva e José Ribas indicam que “a expansão do protagonismo político dos tribunais nas democracias contemporâneas, ao menos no ocidente, constitui um fenômeno que caracteriza este início de século”, em decorrência do que Ran Hirschi apontou como sendo “Revoluções Constitucionais”, geradoras do movimento conhecido como new constitutionalism. Essa tendência consta expressamente do voto do ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento da ADI 1351-DF, que cuidava da questão da cláusula de barreira.
No entanto, o justificado aumento da demanda judicial não é ainda suficiente para explicar a razão da transferência do poder decisório sobre as políticas públicas. É que o princípio da separação de poderes, expresso no art. 2º da Constituição, cláusula pétrea na estrutura republicana adotada pelo Brasil, veda expressamente essa invasão. Do Estatuto Republicano se extrai que ao poder Judiciário não cabe a missão constitucional de interlocução com o soberano-povo sobre o juízo de oportunidade da política pública. Essa valoração é exercida diretamente pelo povo (plebiscito, referendo ou lei de iniciativa popular – art. 14, da CF) ou através do sufrágio universal (caput, do mesmo artigo). A política, nesse caso, é a fórmula constitucional utilizada para verbalizar o poder emanado do povo, direta ou através de seus representantes eleitos (parágrafo único do artigo inicial da Constituição). Não há, nesse aspecto, vazio constitucional quanto a matéria de competência sobre a elaboração da agenda política.
A transferência de poder decisório sobre as políticas públicas, contudo, longe de causar repulsa, recebeu entusiasmado apoio institucional e os aplausos dos mais diversos segmentos sociais. Não se enxergou no fenômeno uma agressão constitucional ou uma perigosa hipertrofia de um poder. Dentre elas, é de se destacar a parcela de culpabilidade dos dois poderes que estão perdendo suas atribuições constitucionais. É a velha máxima que ensina não existir vácuo no exercício do poder, a ausência de um é imediatamente ocupada pelo outro.
O poder Legislativo abriu mão de sua competência quando reduziu, assustadoramente, a sua capacidade funcional, tendo se destacado pelos escândalos (passagens aéreas, servidores fantasmas, nepotismo, paixões amorosas, tráfico de influência, dentre outros) do que por sua produção legislativa. Produzem mal no campo legislativo (PEC dos vereadores, PEC do Calote, etc.) e no campo investigativo fazem das comissões parlamentares de inquérito palcos de meras disputas eleitorais.
O poder Executivo, embora agigantado em competência, há muito perdeu sua referência ética, vez que é constante alvo de escândalos, esmera-se na criação de outros e especializa-se na produção de desvio de verbas públicas em série, má-gestão de recursos públicos ou confusão do público com o privado. Nesse caso, a ausência de apoio popular se dá pela questão ética, não pela perda da competência.
A explicação da transferência decisória da agenda política para o poder Judiciário não pode ser, portanto, encontrada apenas na consolidação do Estado Democrático de Direito, na constitucionalização dos princípios fundamentais ou no fortalecimento institucional. Ao contrário, a supressão da competência de um poder republicano pelo outro, qualquer que seja ele, não contribui para o fim democrático e constitucional de qualquer sistema político.
A hipertrofia de poder é anomalia que não faz bem à vida republicana. O seu resultado poderá ser aquele produzido na Batalha de Heracléia, aquela em que o Rei Pirro II, embora derrotando os adversários romanos no ano de 280 AC, posteriormente descobriu que a sua vitória lhe causou tanto dano que também se fez vencido. E não se tem dúvida de que na guerra dos poderes todos sairão vencidos, principalmente a República Federativa do Brasil, que repentinamente vê quebrantada a espinha dorsal de sua estrutura política. Afinal, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário foram criados para serem harmônicos e independentes, não para serem conflituosos ou subservientes.
* Advogado, foi presidente do Conselho Federal da OAB.