O futebol e a democratização da mídia brasileira
Por Arquimedes Ferraz*
O objetivo deste texto é analisar o futebol brasileiro e o futebol maranhense fora das quatro linhas, atentando para áreas que, por razões mercadológicas, permanecem ocultas do grande público, queremos enfocar, principalmente, a atuação da mídia, o marketing esportivo e o comércio; demonstrando que a atual organização da comunicação social e do futebol no nosso país possibilita a geração de receitas para alguns estados da federação em detrimento de outros, bem como impõe costumes e tradições visando o lucro.
É sabido que a grande mídia tem como objetivo criar no Brasil uma monarquia de clubes de futebol, dividindo os times brasileiros entre o que eles chamam de clubes “grandes” e clubes “pequenos”, sendo políticos e de procedência os principais critérios para se auferir grandeza ou pequenez. Essa tática de alienação que ganhou força em meados da década de 1980 com a transmissão ao vivo dos jogos do Campeonato Brasileiro, serve de discurso ideológico para a existência e a manutenção do Clube dos 13, entidade espúria que se apoderou dos recursos financeiros e da organização do futebol nacional. Tal discurso gerou uma prática midiática que vem surtindo um efeito devastador no futebol deste país, principalmente nas regiões onde o poder dos grupos de comunicação locais é limitado, como no Nordeste.
O planejamento estratégico de redes de televisão como a Globo e a Bandeirantes é fazer com que o país inteiro se identifique com os times dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, acabando com o futebol regional, de modo que não seja necessário contratar profissionais do jornalismo esportivo, nem deslocar estruturas de comunicação para estados periféricos, cortando gastos. Por exemplo, não é interessante para essas emissoras contratar narradores de jogos de futebol no Maranhão, na Paraíba ou no Pará para transmitirem conteúdos regionais, é mais rentável colocar Luciano do Vale e Cleber Machado transmitindo um torneio Rio-São Paulo para todo o país, diminui-se os custos e aumenta-se a divulgação dos clubes dos estados onde essas empresas de comunicação têm suas sedes.
Isso é o que podemos chamar de “globalização” de torcidas.
A receita é simples: a mídia do Sudeste aproxima dos nossos torcedores times distantes que não lhes pertencem/representam e os afastam dos clubes locais, seus verdadeiros representantes e com os quais eles podem interagir efetivamente. Isso provoca um processo de alienação tão forte que causa efeitos devastadores para o futebol regional, como, por exemplo, a transferência dos jogos do Campeonato Maranhense para a segunda-feira, para não concorrerem no domingo com a transmissão pela televisão do Campeonato Carioca, numa demonstração de falta de amor próprio que chega a irritar.
Junte a alteração dos dias dos jogos do campeonato local à declaração do Presidente da Federação Maranhense de Futebol de que, quando o Flamengo joga, ele não acompanha o campeonato do Maranhão e sim o jogo do time carioca pela televisão e temos uma novela de Franz Kafka.
A Rede Globo costuma colocar microfones voltados para a torcida dos times do eixo Rio-São Paulo sempre que eles jogam em estados do país onde ainda predomina a torcida pelos clubes locais, a câmera trabalha em “close” quando mostra a torcida da casa e aberta ao máximo, repetidas vezes, quando mostra a torcida visitante, de modo que o telespectador tem a impressão de que os torcedores do clube carioca ou paulista em atuação são a maioria no estádio, uma manipulação que serve para, mercadologicamente, enquadrar os clubes do eixo Rio-São Paulo como “nacionais” e não regionais, bem como para mostrar quem é o protagonista do jogo.
É bobagem achar que o futebol é mero entretenimento, os clubes movimentam enormes recursos financeiros e ajudam no desenvolvimento econômico, eles geram empregos, pagam impostos, promovem o turismo e divulgam o estado a que pertencem.
A audiência que os maranhenses dão aos clubes do Rio de Janeiro e de São Paulo gera divisas para esses clubes e, portanto, para seus respectivos estados, pois ela é levada em consideração na hora de se fazer contratos com os patrocinadores, e o Maranhão ganha o quê com isso?
A venda de camisas e produtos oficiais são outras grandes fontes de renda para os times, pois, uma boa porcentagem do seu valor é repassada pelo fornecedor do material esportivo para o clube, dessa forma, uma fatia considerável do dinheiro da venda de uma camisa de um Flamengo, Vasco ou Palmeiras, quando comprada por um maranhense, vai direto para esses clubes, possibilitando que eles paguem impostos e gerem empregos no Rio de Janeiro e em São Paulo, ao invés de gerarem estes mesmos empregos e pagamentos de impostos no Maranhão se a camisa comprada fosse de um clube local, e o mais absurdo, um dos estados mais pobres da federação enviando divisas para os dois estados mais ricos, em razão de um produto que também temos aqui, o futebol.
Imaginem, então, se os maranhenses dessem audiência e comprassem produtos licenciados dos times locais, fossem ao estádio torcer participativamente, ao invés de ficarem na frente da televisão sendo meros torcedores virtuais de realidades distantes, que força teriam os clubes do Maranhão?
O futebol é uma grande fonte de empregos, pois os clubes necessitam de uma enorme estrutura de recursos humanos, não são formados somente por dirigentes e jogadores, eles precisam também de diversas pessoas ligadas à área de educação física e marketing, contadores, médicos, roupeiros, cozinheiros, massagistas, etc. Indiretamente o futebol também é um forte gerador de trabalho, tem os ambulantes que vendem espetinho e cerveja na frente do estádio Nhozinho Santos, os chatíssimos flanelinhas e cambistas, e até mesmo, que a Globo e a Band não nos ouçam, jornalistas.
Os clubes também ajudam na construção da cidadania de muitos jovens, tirando meninos das ruas e incentivando a prática de esportes, bem como para sua manutenção eles consomem diversos produtos no mercado local. Então, eu pergunto: será que o estado do Maranhão não perde nada com a situação de penúria dos seus times de futebol?
O abandono dos times maranhenses pelo seu torcedor, não se justifica somente pela falta de estrutura ou pela existência de dirigentes ruins. Os dirigentes locais, é claro, têm sua culpa, os resultados em campo, também, mas o estado sofrível do atual futebol do Maranhão é conseqüência, não causa, pois se fosse assim, ninguém torceria pelos clubes cariocas, já que eles também, apesar do dinheiro que monopolizam, não têm estrutura, qual clube do Rio tem um estádio descente? Qual clube do Rio tem um centro de treinamento descente? Os clubes paulistas, apesar de serem mais organizados, não estão muito distantes dos cariocas. Na verdade, à exceção do São Paulo Futebol Clube, os clubes do eixo Rio-São Paulo também não têm uma boa estrutura e são tão mal administrados quanto os clubes do Maranhão.
É evidente que, por serem de estados mais desenvolvidos economicamente, os clubes paulistas e cariocas tendem naturalmente a serem mais competitivos, mas ganham força, principalmente, pela divisão injusta das verbas dos campeonatos, da organização discriminatória do futebol brasileiro e através do arranjo nocivo para os demais estados da federação que é a atuação da dupla mídia/Clube dos 13 com a cumplicidade da CBF.
Devemos questionar o porquê de um Campeonato Brasileiro com apenas vinte clubes, transformado num torneio Rio-São Paulo com convidados em nome de uma falsa “organização”. Como pode ser um campeonato nacional se poucos estados da federação estão representados no torneio, o Brasil não é a Espanha, a Itália ou a Inglaterra, todos esses países são menores em extensão territorial do que o estado do Maranhão. Pensamos que o modelo ideal para um verdadeiro campeonato nacional seria o praticado nos Estados Unidos, país de dimensões perecidas com a nossa, podíamos adaptar a divisão que eles fazem em costa leste e costa oeste, para, quem sabe, a realização de dois torneios, um Norte/Nordeste e outro Sul/Sudeste/Centro-Oeste, com os respectivos campeões se enfrentando em jogos de ida e volta para decidirem o campeão nacional, mas será que as emissoras de televisão apoiariam esta fórmula e cobririam a competição Norte/Nordeste, será que o Clube dos 13 aceitaria uma divisão isonômica das verbas do campeonato?
Se os “donos” do futebol brasileiro querem seguir padrões de organização europeus, porque não usam os modelos de cotas financeiras utilizados no velho continente, dividindo de forma justa o dinheiro gerado pelos campeonatos nacionais e não o que vemos aqui, onde em 2009, por exemplo, o Vasco da Gama recebeu de cota mais de 17 milhões de reais para disputar a Série B, enquanto Avaí e Náutico receberam 5 e 7 milhões respectivamente para disputarem a Série A; o campeão da primeira divisão daquele ano, o Flamengo, recebeu mais de 36 milhões de cota, o Corinthians e o São Paulo mais de 31 milhões. Em lugar nenhum do mundo onde se joga futebol há uma injustiça tão grande, qual a legitimidade do Clube dos 13 para proporcionar esse abuso? Por que a nossa mídia se cala? Ou melhor, compactua com isso? Assim é fácil se criar times “grandes” e times “pequenos”.
Sabe qual é o principal argumento utilizado para tentar justificar esse absurdo? Os clubes do eixo Rio-São Paulo dão mais audiência. Mas é claro que eles dão mais audiência, na televisão, em rede nacional, eles são hiper valorizados e mistificados, só se transmite jogo deles, só tem programa esportivo falando deles, até nas novelas da Rede Globo tem aniversário de criança decorado com o tema Flamengo.
Na década de 1970, uma pesquisa encomendada pelos jornais impressos do Estado de Pernambuco revelou que no dia seguinte às vitórias do Santa Cruz Futebol Clube havia um aumento nas vendas de jornal e uma queda nas vendas de pão na cidade do Recife. O que se constatou foi que os torcedores do tricolor pernambucano, que são, em sua grande maioria, das classes sociais menos favorecidas, não tendo dinheiro para comprar pão e jornal ao mesmo tempo, irresponsavelmente, optavam por comprar o jornal e não o pão, pois através das fotos dos periódicos eles teriam o registro e as imagens dos jogos. A partir da década de 1980, a televisão brasileira substituiu as fotos dos jornais por imagem em movimento e o poder de sedução que isso possui acabou com o romantismo de se colecionar jornal, mas quais foram os clubes que passaram a monopolizar os espaços nas emissoras de televisão? A que estados da federação eles pertencem? Há um tratamento regional igualitário? Claro que não!
Antes, eram os pais que escolhiam o clube de futebol que seu filho iria torcer, agora quem escolhe é a televisão, e diante desse cenário de alienação é cínico e oportunista dizer que cada um tem a liberdade e o direito de torcer para quem quiser.
A manutenção dessa verdadeira segregação é um dos motivos para o alarde feito pela grande mídia sempre que se tenta aprovar uma lei regulando a comunicação social no país, porque entre outros temas fundamentais para a verdadeira democratização da informação no Brasil está o da regionalização dos conteúdos transmitidos, tema que é tratado como um dos princípios informadores da atuação das mídias de rádio e de televisão pela Constituição de 1988 e que é flagrantemente desrespeitado pelas empresas de comunicação que atuam na área.
Rio de Janeiro e São Paulo ajudam a enriquecer culturalmente este belo e diverso país, e os cidadãos comuns daqueles estados nada têm a ver com o que descrevemos aqui, o problema é a concentração dos veículos de comunicação nas mãos de poucos grupos, cujos donos procedem, principalmente, do eixo Rio-São Paulo, e que não possuem o menor interesse na regionalização e na democratização de conteúdos.
Eu pergunto: como nossos irmãos cariocas e paulistas reagiriam, se por 25 ou 30 anos tivessem como únicas opções de jogos televisionados, o campeonato mineiro na Rede Globo e o campeonato gaúcho na Rede Bandeirantes?
Imaginem se a família Marinho fosse baiana e a sede da Globo fosse em Salvador, o campeonato da boa terra, evidentemente, seria transmitido em rede nacional, e quando houvesse o clássico BA-VI, teríamos no “Show do Intervalo” a presença de Ivete Sangalo no estúdio de transmissão, com a camisa do Vitória, provocando Bel Marques e sua camisa do Bahia; no Campeonato Brasileiro, todo o país só teria a opção de assistir ao jogo do Bahia na quarta-feira (depois da novela, claro.) e ao jogo do Vitória no domingo. Em razão da audiência gerada pelos clubes baianos, as suas cotas financeiras seriam cinco, seis vezes maiores do que às cotas dos clubes do Sudeste, e pelo mesmo motivo, seus patrocinadores seriam os mais fortes. Alex Escobar apresentaria o Globo Esporte, ao vivo, do Pelourinho, com uma fitinha do Senhor do Bonfim na mão que segura o microfone e o Fluminense de Feira de Santana teria mais espaço na telinha do que o Fluminense do Rio. Para os torcedores paulistas e cariocas que contestassem esse modelo de transmissão, a desculpa da Rede Globo para essa preferência pelos clubes baianos não seria o bairrismo, e sim, o futebol da Bahia dá mais audiência, e depois de alguns anos, nesse contexto, daria mais audiência mesmo.
No ano passado, no programa de Globo Esporte, o então dirigente do Flamengo Zico, quando perguntado se o clube iria mandar seus jogos no Nordeste em razão da interdição do Maracanã, respondeu que: “pode ser, mas o ideal é jogarmos aqui no Rio, junto do nosso torcedor”. A resposta espontânea do maior ídolo da história do Flamengo revela que ele não considera os “flamenguistas” nordestinos legítimos, isso é normal, basta ver a estranheza que cariocas e paulistas apresentam quando nos visitam e nos vêem torcendo por seus clubes.
Sendo o futebol produto da cultura, não é necessário fazer um esforço muito grande para saber sua importância para a identidade de um povo, principalmente no Brasil, por exemplo, ao passar o Carnaval do ano de 2009 na cidade do Recife, perdi contato com um amigo de São Luís que se encontrava hospedado em Olinda com um grupo de vinte maranhenses, eis que na noite da segunda-feira de Carnaval, em pleno Recife Antigo, no meio de milhares de foliões, passa por mim um homem que eu nunca havia visto na vida, com a camisa do Sampaio Correia Futebol Clube, imediatamente eu o abordei e perguntei se ele estava no mesmo grupo do meu amigo, ele disse que sim e me indicou onde encontrá-lo. Eu teria feito a mesma coisa se essa mesma pessoa tivesse passado por mim com a camisa do Moto Clube, do M.A.C. ou tocando uma Matraca de Bumba-Meu-Boi, mas jamais teria tomado tal atitude se o homem que eu abordei estivesse, por exemplo, com uma camisa do Flamengo ou do Botafogo, pois tais camisas não estão entre os símbolos maranhenses.
Se não valorizarmos o que nos representa, passamos a ser meras cópias da representação alheia, e, portanto, sem identidade, nunca legítimos.
Somos todos brasileiros, mas nossas peculiaridades é que engrandecem e enriquecem este país, para quê acabarmos com elas? Para a mídia vender mais do mesmo?
*Arquimedes Ferraz é servidor do TRE/MA, pernambucano, torcedor do Santa Cruz.