O jornal O ESTADOMA e EU
Alvorece. Um mendigo estirado na calçada e encostado ao batente de uma loja permanece indiferente aos transeuntes que passam. Até que, num gesto brusco, levanta a cabeça, sacode os ombros e se senta. Em seguida, passa as mãos nos cabelos desgrenhados, enquanto se liberta dos andrajos que o cobrem. Toma de uma velha mochila ao seu lado e procura algo em seu interior. Desiste e mete, freneticamente, as mãos no bolso. Agora sim, parece ter achado o que procura.
Meio desorientado, como se ainda estivesse sob o efeito do sono, busca com o olhar localizar algo. A câmera que filma o episódio muda o foco para a paisagem ao redor e mostra, na esquina, uma banca de revistas, para onde, agora, ele se dirige a passos trôpegos. Entrega alguma coisa na ponta dos dedos para o dono da banca e retorna com algo. Esse algo, que põe debaixo do braço e acabou de comprar em troca de algumas moedas é um jornal.
De novo no batente da loja, que ainda não abriu, senta-se. A câmera foca o rosto do mendigo, absorto, por trás do jornal. Seus instantes de leitura são registrados pela câmera, enquanto o mendigo permanece concentrado, longe de sua vida difícil, enquanto a Terra e seu satélite giram, giram as pessoas e o mundo todo, inclusive aqueles que passam apressados diante dele, quase a pisoteá-lo. Durante esses alguns minutos nada existe, para ele, além do que lê no jornal.
Essa cena, registro da primeira preocupação de um mendigo em sua primeira ação do dia, mais forte que a fome, mais forte que a pobreza, mais forte que a carência afetiva e social perpetuou-se em minha mente depois que a vi, na televisão. Não lembro exatamente quando e em que programa aconteceu, só recordo que se deu na Argentina. Talvez tenha sido uma cena fortuita, sequestrada do cotidiano e o objetivo nem tenha sido o de enfatizar a busca da leitura como primeira ação do dia.
Ao ser convidado para escrever sobre o aniversário de 60 anos do jornal o Estado do Maranhão, lembrei-me desta cena e a localizei como ponto de partida para a tradução dessa empatia que, como a do mendigo, se estabeleceu de mim para com os jornais a partir de certo momento da minha juventude. Já disse a amigos mais íntimos ou familiares que os melhores momentos de minha vida não foram viagens, idas a restaurantes, baladas ou carnavais, mas os instantes em que, livre da azáfama do trabalho como engenheiro metalurgista, então no Rio, depois em Minas ou Salvador, adquiria o Jornal do Brasil, o Globo ou O estado de São Paulo, em dia de feriado e, sem preocupação com o tempo, pegava do jornal e isolado em algum canto de uma lanchonete ou bar , lia as notícias que me interessavam: de política, esporte, cinema e, em especial os cadernos de literatura para depois garatujar escritos sonhando com o dia em que poderia ser lido por alguém ou ler a mim mesmo nas páginas de um jornal.
Sim, porque somente comparável à alegria de ler é a de se ver publicado, principalmente quando isso é inusitado, o que me aconteceu pela primeira vez em tempos mais remotos quando, estimulado pelo saudoso Erasmo Dias, enviei um poema intitulado A Chamada para as páginas do Jornal Pequeno. Imaginem essa alegria multiplicando-a pela esperança juvenil, esse sinal de operação/transformação que, mais na vida que na matemática, tem a capacidade de acelerar os sonhos. Soa redundante, então, enfatizar como sou grato a este periódico que me proporcionou a segunda parte desta realização há mais de 25 anos, primeiro como colaborador eventual e depois assíduo. Por isso me considero também aniversariante. Neste memorável dia em que se comemora 60 anos deste jornal é certo, também, que teria dificuldade de traduzir a satisfação em fazer parte dos que aqui escrevem, caso não recorresse à imagem desse glorioso mendigo-leitor para evocar essa vibrante pulsão que transforma (ainda bem!) todos nós – leitores e escritores de jornais e livros – em mendigos das palavras que neles porfiam, tornando mais dadivosa e especial a rotina de nossas vidas.
José Ewerton Neto é autor de O ABC bem humorado de São Luis