artigo publicado no jornal O estado do Maranhão
Muito se tem escrito sobre o isolamento a que se relega o ser humano em seus últimos momentos. A assepsia e o tecnicismo de uma UTI, distantes do aconchego e da solidariedade familiar, concorrem para esse estado de coisas. É como se o quase morto passasse a pertencer a uma vexaminosa confraria de seres: os que se aproximam de mortos, e, por isso, são capazes de contaminar a alegria e o prazer dos que estão vivos.
Se esse é o modus operandi dessa relação com os quase mortos, imagine-se para os mortos, os definitivamente mortos: aqueles a quem, segundo essa visão que hoje predomina, se deve evitar a todo custo. Ora, alguém pode refutar que continuam se fazendo homenagens aos mortos, que estes são venerados e reverenciados, mas não falo aqui daqueles cuja trajetória foi cultivada no ambiente festivo do que se costuma chamar celebridades. Para estes as lágrimas jorram ainda que a dor seja passageira e artificial, como provavelmente foi o defunto. Mas falo do morto comum, sem grana e sem fama, aqueles por quem choram apenas pais e filhos, quando muito.
Como uma garota de programa pobre, por exemplo. Que haja nascido razoavelmente bonita e que por isso mesmo faz filmes pornôs e transa por dinheiro. Que para muita gente nem chega a garota de programa (essas, com sorte, chegam até a BBB) , mas só vai até prostituta mesmo. Enfim, alguém que depois de morta o melhor para todo mundo é que desapareça sem deixar vestígios que atrapalhem a festa dos que ficaram vivos: alguém que tenha sido nada, absolutamente nada.
Como assim se referiu o Ministro Marco Aurélio Melo, do alto de sua sapiência jurídica e arrogância imperial, ao explicar o habeas corpus concedido ao goleiro Bruno, que esteve preso durante 5 anos. Ele, que mandou matar e dar sumiço em uma mulher grávida por estar esperando um filho seu. Ela que, por essa razão, foi feita prisioneira dele e depois morta, esquartejada e teve ossos e carnes devorados por cães sedentos para ‘sumir’ definitivamente de sua vida, conforme denunciaram amigos presos do jogador. No dizer do ministro tanta atrocidade nada significa: “Nada, absolutamente nada, justifica a prisão deste rapaz durante todo esse tempo.”
Ao basear-se para sua decisão em nebulosas interpretações do rigor da lei, causa espécie que haja contribuído para manifestações a favor de sua decisão o fato de não haverem descoberto o cadáver da moça. “Se não descobriram o cadáver, então não há crime.” Inauguram assim um conselho aos monstros capazes de assassinatos cruéis como o que provocou a eliminação de Elisa Samúdio (sim, ela foi um ser humano e teve nome, gente): “Quando matarem a partir de agora façam tudo para exterminar completamente a vítima. Assim, terão garantidas suas liberdades”.
A desfaçatez do assassino Bruno, depois de liberto, ao evocar cinicamente a compaixão da sociedade em contraponto à que não teve com sua vítima ao dizer que “Minha permanência na cadeia não a trará de volta”, ressoa em consonância com a opinião do ministro expondo a lógica de uma lei que promovesse a remissão de todas as crueldades porque…os mortos não voltam e, portanto, não merecem que algum vivo perca tempo com eles.
“Este é um País feito por bandidos para bandidos”, já disse um eminente jurista do passado e parece caminhar para isso cada vez mais Para os bandidos, tudo. Para suas vítimas nada. Absolutamente nada.
José Ewerton Neto é autor de O entrevistador de lendas