O ateu é apenas um descrente de si mesmo. Ouvi esta história há muito tempo. Não sei se a mesma é verdadeira. Conto-a assim mesmo, do modo que me foi contada. Quem a contou garante que o principal personagens tem nome e endereço e que, em última instância e por muita insistência, pode ser revelado. Eis o fato.
Há tempos atrás, um certo médico e escritor ocasional, mineiro, mas radicado desde a juventude no Rio de Janeiro, autor de um excelente livro de memórias, foi acometido de violenta dor de cabeça, que já o atormentava por vários meses. Depois de tentar, ele próprio, debelá-la, receitando-se, nenhum êxito conseguiu. Procurou outros colegas, ligados à patologia, e a dor continuava. Algumas vezes os achaques minoravam, minoravam apenas, depois voltavam, com a mesma intensidade.
Às pessoas íntimas ou mais próximas que ele falava dessa dor chegaram a recomendar-lhe “simpatias” e benzimentos, que jamais levara a sério, eis que iam contra a ciência da qual era “doutor”.
Um dia uma respeitável senhora, poeta nas horas mortas, radicada aqui mesmo nesta Ilha tropical, que também sofria das mesmas dores, lendo uma revista médica deparou-se com uma declaração do famoso mineiro, acima referido, de que se havia curado daquele doença, não revelando como.
Com essa notícia alvissareira, a senhora sofredora, que por sinal era esposa de outro médico, depois de muito tentar, um dia conseguiu falar, à distância, com o discípulo de Esculápio, ex-sofredor do mal, para saber como se curara, posto que, com efeito, queria também ser curada, e nada melhor do que por intermédio de alguém que já sofrera do mal e, ainda por cima, de um cultor da medicina.
O interpelado não quis revelar o “segredo”. Preferiu dizer-lhe, evasivamente, que sua cura surgira de repente, por acaso, sem interferência de nenhum fator externo. Fechou-se em copas, como se diz quando a pessoa não quer continuar a conversa.
Dois anos depois, a dita senhora, que continuava vítima das dores, tornou-se profissionalmente intermediária de contatos dos médicos maranhenses com os demais médicos de outros estados e, numa dessas coincidências que pouco ocorrem, por sorte manteve diálogo telefônico com o famoso profissional curado “por acaso” e voltou a lhe falar sobre o assunto, dessa vez com certa insistência, apelando para sua sensibilidade, pois precisava, com urgência, daquela orientação.
Finalmente, a história tomou outro rumo. Conversa vai, conversa vem, seu interlocutor, depois de constatar a seriedade e o sofrimento da interpelante, resolveu contar-lhe a verdade. Revelou-lhe que ao reclamar das dores, mais uma vez, para alguém que sabia do seu caso, um frade dominicano, seu fraterno amigo, este lhe perguntara: – Você já experimentou pedir a sua cura, em prece, diretamente para Deus?”.
A resposta foi esta, curta e grossa: – Não, não pedi. Sou ateu, não acredito em Deus”. Mas o frade amigo insistiu. – Tudo bem. Mas faz de conta que você tem fé e faça uma promessa para algum santo de quem já ouviu falar; ofereça uma recompensa que lhe exijasacrifício, seja humilde, persistente e espere pacientemente o resultado, ainda que demorado. Talvez você mereça ser curado.
Como o declarado ateu já havia tido boas referências sobre Francisco de Assis, desesperado resolveu apelar e fez ao santo uma promessa radical: Se ficasse bom, prometeu ele, não mais seria ateu, passaria a acreditar em Deus, sem restrição. E, para completar, passou a ler, detalhadamente, sobre a vida desse personagem icônico: sua renúncia à opulência material em que vivia, suas lutas interiores para reformar-se intimamente, o amor incondicional que passara a dedicar a Deus e a todos os seres criados, construindo templos à virtude e à caridade.
Pensava no santo de Assis como pessoa viva, como se com ele mantivesse laços de conhecimento e afetividade. O médico e escritor concluiu a sua história, confessando que depois de alguns meses de promessas e conversas silenciosas com o taumaturgo, amanheceu um dia sem dor na cabeça. Agradeceu, prometendo dominar seu ateísmo e acreditar em Deus, reconhecendo-o como um espírito infinito do bem.
Com esse desfecho feliz, restou apenas acrescentar que o médico, no final, esclareceu àquele senhora que antes não lhe contara a verdade por simples preconceito, eis que, sendo homem de ciência, sua reputação, a seu ver, ficaria manchada perante a comunidade científica. Naquela época, no segundo quartel do século XX, os médicos ainda não achavam de bom tom revelarem sentimentos religiosos. Preferiam declarar-se ateus – e às vezes nem o eram.
Por um lapso imperdoável, não perguntei àquele senhora amiga se ela, a narradora, seguira ou não o método confessado pelo médico, em benefício de sua própria cura.