Seu pai era vaqueiro e lavrador; sua mãe, além dos afazeres de casa, fazia bordados para as famílias mais abastadas. Ele, o personagem principal, ajudava seu pai no campo e depois que concluiu o antigo curso elementar, e não querendo ser sapateiro, alfaiate nem ferreiro – profissões que poderia dedicar-se – aos 22 anos decidiu ser embarcadiço, marinheiro, ou melhor, moço-de-convés de uma das lanchas que, na época, trafegava ao longo do rio conduzindo cargas e passageiros das cidades ribeirinhas de Arari, Vitória do Mearim, Bacabal, Ipixuna e Pedreiras, para a capital. A atividade do rapaz consistia em fazer, junto com outros, os serviços gerais de tripulante, que não lhe eram pesados, por ele ser forte e decidido.
Numa de suas viagens, o moço-de-convés, que fora batizado com o nome de Eurico em homenagem ao então presidente da República (general Eurico Gaspar Dutra), seguiu viagem, na lancha Estela da Aurora, em que laborava, com destino a São Luís. Estava um tanto indisposto, sem aquela costumeira tepidez, mas foi assim mesmo, pois não queria demonstrar fraqueza. Não conseguiu bom desempenho no trabalho a bordo, porém disfarçou ao máximo para não ser advertido.
À noitinha, sua embarcação singrava as águas distantes, já na embocadura do rio, a mais de 200 metros da margem quando, após pouco se alimentar, sentiu-se febril, sentou-se sozinho da popa da embarcação, distante de todos; cochilou, adormeceu e sem querer despencou na água gélida daquele braço de mar, a longuíssima distância do porto de origem.
O baque o acordou, é evidente. Forte e atlético, Gaspar lutou, desesperadamente, contra a correnteza, e com esforço hercúleo conseguiu alcançar a terra, sem saber onde fora dar com os costados exauridos. Cansadíssimo, dormiu ali mesmo, no chão molhado. Acordou com o sol alto, sentindo-se mais forte. Acostumado às intempéries do campo, sem rumo certo, decidiu enfrentar uma longa caminhada, alimentando-se de algumas frutas no caminho, margeando o rio e sabendo que, se não houvesse outro grave incidente, alcançaria, talvez no espaço de três dias, a residência de seus pais.
Nesse ínterim – é preciso que se diga – sua lancha chegou à capital e o comandante telegrafou aos seus pais comunicando que o filho despencara nas águas profundas e, certamente, morrera afogado. A família, religiosa, depois de esperar durante dois dias por alguma notícia do jovem, considerou-o falecido, e no terceiro dia, como era tradição no lugar, começou a rezar pela sua alma.
Entretanto, Eurico, com muito sacrifício, transpôs o longo caminho de volta, parando de vez em quando para descanso, vencendo igarapés repletos de jacarés e piranhas, e exatamente depois de três dias, às oito da noite, chegou à casa assobradada, no bairro Perimirim, sua antiga morada. Encontrou a porta semifechada e o ambiente meio na penumbra. Muita gente – seus pais, parentes, amigos e vizinhos – concentrava-se em fervorosas preces pela salvação de seu espírito. A princípio, sua presença, repentina, assombrou a todos. Pensavam tratar-se do seu fantasma.
Passado o susto, houve grande algazarra, demonstrações de felicidade e alegria pela sua presença física. E logo em seguida, a reza continuou, com a piedosa participação do próprio náufrago, não mais pela intenção de sua alma, mas pela volta normal à vida e ao convívio dos seus.
Esta é mais uma historinha que reflete a alma singela deste nosso povo de outros tempos.
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José Fernandes é membro da Academia Ludovicense de Letras e autor, entre outros, do livro “Gente e Coisas da Minha Terra”.