Crônica de José Fernandes: “Hoje tem espetáculo”

0comentário
“Disse que já havia acertado com o dono de um circo ainda na ativa, instalado na cidade de Itapecuru e lá estaria na próxima semana”

São Luís – Numa velha casa de cômodos da professora Valois, na rua São Pantaleão, nesta ilha magnética, onde eu morava nos tempos de juventude, também residia um rapaz, mais ou menos de minha idade, que ali trabalhava por conta própria como ourives.

A profissão dele não me era simpática porque lembrava o Zezinho Ourives, como era conhecido o carrancudo cidadão que também fora dentista prático e inutilizara dois dentes meus, obturados com material inadequado, na minha infância, em Arari.

O convívio, porém, tornara normal a minha aproximação com o colega de moradia, com quem me habituara a conversar, na sua banca de artesão, eis que ambos gostávamos de contar as nossas aventuras, ou de ouvir histórias de outros aficionados.

Um dia Eurico – esse era o nome do vizinho –  me falou que iria interromper a sua atual profissão, para retornar, pelo menos por algum tempo, à sua antiga vida de trapezista de circo, que lhe dera muito prazer e só a deixara por ter sido desativada por falta de recursos, o pequeno circo em que trabalhara. Disse que já havia acertado com o dono de um circo ainda na ativa, instalado na cidade de Itapecuru e lá estaria na próxima semana.

Enquanto o inconformado ourives me falava no seu próximo destino, vieram ecos da minha infância em que nós, crianças imberbes, acompanhávamos pelas ruas da nossa cidade os palhaços, que nos perguntavam: “Hoje tem espetáculo?”. E gritando, respondíamos: “Tem, sim, senhor!”. Com esse “árduo trabalho” garantíamos a nossa entrada gratuita no espetáculo da noite.

Daí, lembrei-me que na semana subsequente àquela nossa conversa, eu estaria de férias e, espírito livre, bem que poderia viver uma emocionante aventura e conhecer, de perto, os meandros internos do ambiente circense que, na infância, tanto me empolgara. E perguntei ao meu novo amigo se eu, que já havia feito pequenos papeis em peças teatrais e sabia declamar poesias, não podia entrosar-me naquela sua aventura e ajudar na representação dos dramas e comédias e, de sobra, declamar poemas.

O jovem ourives entusiasmou-se com a minha ideia. Afirmou que eu seria bem recebido, até porque poderia ele condicionar o meu ingresso ao seu contrato com o grupo mambembe, que nunca tivera um trapezista.

Com esse plano, fomos, de trem, a Itapecuru- Mirim. Fui aceito e nessa mesma noite Eurico estreou no trapézio e eu, dois dias depois, já desempenhava um personagem num drama e nos intervalos das apresentações ia ao picadeiro, como se fora o palco de um teatro, e declamava versos que a plateia não entendia mas achava bonitos.

As coisas estavam indo razoavelmente bem; o circo era pobre – notei que passava por dificuldades: a comida era pouca, e regrada. A trupe era humilde, porém educada.

Logo no segundo dia da minha permanência na cidade de Itapecuru arranjei uma namorada, garota bem nova e bonitinha, que exercia uma atividade um pouco exótica para uma pessoa do sexo feminino e com tão pouca idade – era responsável pelo badalar do sino da única igreja local; todos a chamavam Maria Sineira, apelido que não me agradava.

Quando tudo parecia normal, na quarta noite de minha atuação no palco, depois de apresentar o drama e no momento em que euforicamente declamava meus versos, divisei, na primeira fila da plateia, um casal de moradores da minha terra, de meia idade, acompanhado de uma jovem bonita, todos muito bem trajados, confortavelmente sentados em local especial – eram pessoas tidas como ricas na minha cidadezinha,, com as quais não mantinha aproximação, mas era, de longe, um admirador da recatada filha do casal. E ainda, para cumular o meu espanto e o meu constrangimento, vira eu, na plateia, outro casal, o promotor público da Comarca e a esposa, que eu conhecera e fora apresentado como repórter, em São Luís, numa comemoração cívica.

Para minha surpresa, terminado o espetáculo, o promotor e a esposa foram cumprimentar-me, na pobre coxia, e me convidaram para almoçar com eles, no dia seguinte – convite que agradeci e recusei, alegando ter que viajar de volta para São Luís, nas primeiras horas daquele dia.

Realmente, ficara eu deveras constrangido, envergonhado mesmo, por me terem descoberto exercendo aquela humilde atividade, imprópria para filho de família considerada próspera, e por isso mesmo havia decidido deixar de vez aquele emprego temporário, embora eu próprio me surpreendesse com aquele meu preconceito, por considerar-me, até então, livre de quaisquer amarras.          

E no dia seguinte, deixando meu amigo Eurico empolgado com o seu trapézio, estava de volta à minha vidinha comum, na capital, embora saudoso de minha namorada, a Maria Sineira.

————————————————————-

JOSÉ FERNANDES é da Academia Ludovicense de Letras, autor, dentre outros, dos livros “Crônicas de Outono” e “LUSO TORRES, general, escritor e estadista”.

Sem comentário para "Crônica de José Fernandes: “Hoje tem espetáculo”"


deixe seu comentário

Twitter Facebook RSS